VII

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Acordo com o som de gritos.
Meus olhos se abrem rapidamente, cuspo alguns insetos da boca e me sento. O som vem de longe, mas não é da Escola. Falta o pânico lamurioso dos cadáveres que ainda respiram por lá. Reconheço o fogo desafiador desses gritos, a esperança inexorável frente a inegável falta de esperança. Fico em pé e corro o mais rápido que um zumbi já correu.
Seguindo o som dos gritos, acho Camila no portão de embarque de partidas. Ela está em um canto cercada por seis Mortos babando. Eles vão se aproximando dela, recuam um pouco quando ela balança seu cortador de grama barulhento e fumacento, mas voltam a andar, juntos. Corro até lá e invado o círculo, derrubando-os como se fossem pinos de boliche. Bato tão forte no que está mais perto dela que os ossos da minha mão se quebram como conchas esmigalhadas. O rosto dele se afunda e ele cai. O segundo mais perto eu empurro até a parede e bato com a cabeça dele no concreto até que seu cérebro aparece e ele cai. Um deles me pega por trás e morde o meu quadril, arrancando um pedaço de carne. Estico a mão para trás, arranco o seu braço podre e então giro com força como se o braço fosse um taco de beisebol e eu fosse Babe Ruth. A cabeça dele gira 360 graus e então cai, arrancada do corpo. Fico parada em frente a Camila com os braços levantados em posição de luta e os Mortos param de avançar.
- Camila!- Eu rosno para eles e aponto para ela.- Camila!
Eles ficam me olhando e balançam para frente e para trás.
- Camila!- Falo outra vez, não tendo certeza do que mais poderia dizer. Ando até ela coloco minha mão em seu coração. Solto o braço que usei como bastão e coloco a mão em meu coração.- Camila.
O saguão está em silêncio, a não ser pelo chiado baixo do cortador de grama de Camila. O ar está pesado com cheiro de damasco estragado que a gasolina soltava, e noto os vários corpos decaptados que estão perto dos pés dela e que não foram obra minha e penso. Muito bom, Camila. Você é uma dama e uma pessoa sábia.
- Que merda... é essa?- Ouço uma voz pesada grunhir atrás de mim. Uma forma alta e forte está se levantando. É o primeiro que ataquei e dei um soco na cara. E é o M. Nem o reconheci no calor do momento. Agora, com um lado do rosto afundado, está mais difícil ainda de reconhecê-lo. Ele olha para mim e passa a mão no rosto.
- Que está...fazendo, você...- A voz dele morre pela falta de outras palavras.
- Camila.- Falo outra vez, como se isso fosse um argumento irrefutável. Aquela palavra, um nome complexo e carnudo. Ela tem o efeito de um celular brilhante e falante mostrado em uma multidão de pessoas primitivas. Todos os mortos que sobraram, olham para Camila em total silêncio menos M. Ele está perplexo e enraivecido.
- Viva!- Ele cospe.- Comer!
Balanço a cabeça.
- Não.
- Comer!
- Não!
- Comer, caralho...
- Hey!
M e eu nos viramos. Camila sai de trás de mim. Olha para M e aumenta a rotação do motor do cortador.
- Vai se foder.- Ela diz, encostando um dos braços no meu ombro, e sinto um picada de calor se espalhar ao seu toque.
M olha para ela, depois para mim, para ela e depois para mim de novo. Sua careta permanente está séria. Parece que estamos num impasse, mas antes que ele possa se desenvolver, o silêncio é quebrado por um rugido reverberante, como um estranho sopro de uma corneta sem ar.
Todos nós viramos para as escadas. Vigorosos esqueletos amarelados começam a aparecer, um de cada vez, vindos de outros andares. Um pequeno comitê de Ossudos emerge das escadas e se aproxima de mim e de Camila. Eles param na nossa frente e formam uma fila. Camila vai um pouco para trás, com sua coragem perdendo a força diante do olhar escuro e sem olhos deles. Ela aperta o meu braço.
Um deles anda e para bem na minha frente, há apenas alguns centímetros do meu rosto. Nenhum ar de sua boca vazia, mas posso subir um zumbido fraco emanando de seus ossos. Esses zumbidos não existem em mim, em M ou em qualquer um dos outros Mortos carnudos, comecei a imaginar o que exatamente poderiam ser estas criaturas secas. Não consigo mais acreditarem vodu ou algum vírus de laboratório. Isso é algo muito mais profundo e sombrio. Isso vem do espaço, das estrelas ou da desconhecida escuridão que existe por trás de tudo isso. São as sombras do porão trancado de Deus.
Eu e o demônio estamos congelados e olhando fixamente um para o outro, de dedo para dedo e de olho para órbita vazia. Não pisco, e a coisa não tem como piscar. Parece que horas se passam. E então ele faz algo que diminui um pouco o terror causado por sua presença. Ele levanta a mão e tem várias fotos de Polaroid nela, e começa a me passar, uma por uma. Vejo um senhor orgulhoso exibindo seus netos, mas a cara feia do esqueleto não parece a de um avô e as fotos estão longe e aquecerem o coração de alguém.
São fotos de uma batalha. Fileiras organizadas de soldados disparando foguetes em nós, rifles disparando com precisão, um, dois três. Cidadãos comuns com facões e serras elétricas nos cortando como se fossemos árvores de amoras pretas, espalhando pingos de nosso líquido escuro nas lentes. Grandes pilhas de corpos frescos e mortos de novo encharcados de gasolina e acessos.
Fumaça. Sangue. Fotos de família das nossas férias no inferno.
Mas apesar dessa apresentação de slides ser inquietante, eu já tinha visto. Testemunhei os Ossudos fazendo seu show dúzias de vezes, em geral para as crianças. Eles se arrastam pelo aeroporto com suas câmeras penduradas nas vértebras, algumas vezes nos acompanhando em nossas caçadas por alimento, ficando para trás para documentar os massacres, e sempre fiquei imaginando o que eles queriam. Os objetos de desejo deles são sempre os mesmos nunca variam, cadáveres. Batalhas. Novos convertidos. E eles mesmos. As salas de reuniões deles têm as paredes cobertas com estas fotos, do chão até o teto, e às vezes eles levam um jovem zumbi até lá e o deixam na sala durante horas, às vezes dias, apenas apreciando o trabalho deles em silêncio.
E agora este esqueleto, igual a todos os outros , vai me passando as fotos devagar e civilizadamente, confiante que as imagens falam por si só. A mensagem do sermão de hoje é bem clara: Inevitabilidade. Os resultados binários e imutáveis de nossa interação com os Vivos.
Eles morrem/nós morremos.
Um som sai de onde seria a garganta do esqueleto, um som cheio de orgulho, censura e de justiça dura e rígida. Transmite tudo o que ele e os outros Ossudos têm a dizer, o lema e mantra deles. Diz : Não preciso dizer mais nada. As coisas são assim.
E também.
Se estou dizendo que são assim, é por que são assim.
Olhando diretamente para suas órbitas vazias, deixo as fotos caírem no chão. Esfrego as mãos, uma na outra, como se quisesse tirar a sujeira delas.
O esqueleto não reage. Apenas me encara com aquele horrível olhar vazio, tão absurdamente estático que parece ter parado o tempo. O zumbido sombrio de seus ossos domina tudo, uma onda senoidal baixa com o de outro som mais amargurado. Então, tão repentinamente que me faz até pular, a criatura gira e se junta aos seus companheiros. Ele solta um último som de corneta e depois os Ossudos descem pela escada. Os outros Mortos se dispersam lançando olhares famintos para Camila. M é o último a partir. Ele me olha com uma cara feia e então vai embora. Camila e eu ficamos sozinhas.
Viro-me e olho para ela. Agora que a situação foi resolvida e o sangue no chão está secando, finalmente posso contemplar o que está acontecendo aqui, e em algum lugar lá no fundo do meu peito, meu coração suspira asmáticamente. Gesticulo em direção a uma placa que imagino indicar partidas e lanço um olhar de dúvida para Camila, incapaz de esconder o ressentimento por trás dele.
Camila olha para o chão.
- Já se passaram alguns dias.- Ela murmura.- Você disse alguns dias.
- Queria levar ... você para casa. Dizer adeus. Manter... você segura. Segura.
- Tinha que ir. Desculpe, mas eu precisava. Quer dizer, não posso ficar aqui. Você entende isso, né?
Sim. É claro que eu entendo.
Ela tem razão eu sou uma ridícula.
Mesmo assim...
E se talvez...
Quero fazer algo impossível. Algo surpreendente e nunca visto antes. Quero tirar a poeira da Nave Espacial e levar Camila para a Lua, colonizar o lugar, ou navegar em um navio afundado até uma ilha distante onde ninguém reclamaria da gente, ou então apenas aproveitar a magia que me leva pra dentro do cérebro dos Vivos e trazer Camila para o meu, por que é acolhedor aqui, é silencioso e adorável, e aqui dentro não somos uma justaposição absurda, somos apenas perfeitas.
Ela finalmente olha nos meus olhos. Ela parece uma criança perdida, confusa e triste.
- Obrigada por, hã...me salvar. De novo.
Com um grande esforço, deixo de lado meu sonho e dou um sorriso.
- Pode contar... sempre.
Ela me abraça. Meio desajeitada a princípio, um pouco assustada e enojada, mas então se entrega ao abraço. Ela apoia a cabeça no meu pescoço gelado e me abraça apertado. Sem conseguir acreditar que aquilo está acontecendo, passos meus braços em torno dela e a abraço também.
Posso jurar que estou sentindo meu coração bater. Mas provavelmente é apenas o dela, que está pressionado contra o meu peito.

My girlfriend is a zombie.Where stories live. Discover now