22. Aquilo ao qual se dá o nome de fé

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Nota da Autora:

Aviso de feels. Mds, porque DR é tão cheia de feels assim?

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- Newt...
          Somente o tom que eu usei ao falar seu nome já foi suficiente, após o longo período de um constrangedor silêncio em que tínhamos mergulhado nos últimos minutos, para que ele percebesse que eu estava iniciando a conversa séria, e com as mãos trêmulas, ele baixou o rosto para o chão.
          - Memê... Precisa ser já, não podemos aproveitar um pouco mais o tempo?
           Olhei-o tristemente com ar constrito. Não estávamos aproveitando coisa alguma. Havíamos almoçado juntos, conversado pequenas amenidades que pareciam alegrá-lo, mas logo tudo havia findado. Agora imóvel sobre o encosto do sofá o filhote parecia cochilar tranquilamente, e eu cruzei os braços dessa vez sobre o peito, balançando de leve a cabeça:
          - É preciso, Newt. Está ficando tarde, e nós dois sabemos que a próxima oportunidade é completamente imprevisível.
          Erguendo-se do sofá onde estava sentado até então, passando uma das mãos pelo cabelo ele deu alguns passos ao redor sem destino certo, antes de passá-la sobre o rosto, e ele então começou a falar, de forma meio apressada:
          - Memê, se... se é sobre o fato de que nosso filho não tem a mesma capacidade que você que você quer falar, saiba que eu não me importo, de verdade - e olhou-me no rosto rapidamente - Aquilo o que eu disse sobre querer ver o rosto dele... não... não faz diferença. Eu vou amá-lo para sempre e da mesma forma, você sabe, não sabe? Isso não tem importância - e olhou com ar carinhoso para a cobra branca sobre o encosto do sofá adiante por um longo momento antes de olhar-me de volta, sorrindo de leve antes de tornar-se de novo sério e baixar os olhos para o chão, e eu então falei:
          - Sim, eu sei disto, Newt.
          - Então pronto. Está tudo bem, não é?
          - Não, Newt. Não está tudo bem.
          Erguendo-me os olhos então de forma súplice, Newt torceu os lábios com desespero, e meu coração tornou-se como que bem pequenino dentro do meu peito, e diminuindo cada vez mais, como se aquele olhar dele tivesse esse poder de fazê-lo a mim, e eu respirei o mais profundamente que consegui antes de falar baixinho:
          - É melhor você sentar-se.
          - Não, eu... Eu estou bem de pé - disse ele, olhando ao redor de forma tensa - Você não consegue sentar-se, então eu ficarei de pé como você.
          Apertando meus próprios braços com as mãos que eu tinha passado às costas, eu suspirei novamente e disse-lhe de forma pausada:
          - Certo - observei-o ainda um instante antes de começar - Eu tenho pensado muito, Newt. Eu creio que nosso destino juntos já foi cumprido.
          - Não... - ele evitava olhar-me - Não estou compreendendo.
          - Newt, por favor, não torne tudo mais difícil.
          Passando ambas as mãos no cabelo, ele fez um gesto de desesperança antes que enfim conseguisse falar, com voz entrecortada e embargada:
          - Você está falando que quer ir embora?
          - Eu não quero. E você sabe. Mas é o correto, Newt.
          Pondo-se de costas para mim por um momento ele pôs ambas as mãos na cintura, baixando a cabeça para o peito antes de virar-se novamente para mim num gesto brusco, erguendo um pouco o tom de voz ao que dirigiu-me ela:
          - Mas não é possível, Memê! É loucura! Você quer se expor, e ao nosso filho, ao perigo novamente? Não - e ergueu uma das mãos no ar para mim, num gesto de autoridade  - Não, definitivamente não. Vocês vão ficar aqui comigo na mala, a salvo. E ponto final. Está decidido.
          - A salvo até quando?
          A minha pergunta pareceu chocá-lo, e ele calou-se abruptamente, ao que eu então prossegui, falando-lhe com voz infinitamente calma:
          - A salvo até quando? Até você envelhecer e morrer, Newt? E depois? Você sabe quanto tempo em média vive um metamorphosusvelticcus? - ele baixou os olhos para o chão com um leve riste de vergonha no semblante, como se envergonhasse-se por, sendo o cientista natural que era, não ter a resposta para essa pergunta - Pois eu lhe direi: Três mil anos do seu tempo. E eu tenho pouco mais de mil, Newt. E nosso filhote nasceu agora. Consegue compreender?
          Ele olhou-me engolindo em seco, com um nó aparente na garganta antes de conseguir dizer - Mas não importa! O tempo que eu puder, eu irei protegê-los... Aqui - e abriu os braços em volta, como quem indicasse à sua mala, dentro da qual estávamos, mas eu baixei a voz e falei:
          - Você está sendo egoísta.
          Newt pareceu subitamente chocado ante essas palavras - Egoísta?? Eu? Por Merlin, o que você está dizendo, Memê?
          - Egoísta, sim. Você só está pensando no que você quer, no que você acha que é o melhor. E quanto a mim? - e de repente descruzei os braços - E quanto aos meus sentimentos, você pensou neles? Você acha que eu iria suportar vê-lo envelhecer, vê-lo morrer, sem poder fazer nada, Newt?
          - Mas você também está sendo egoísta - disse ele com lágrimas nos olhos agora - Você não está pensando no fato de que eu te amo! Eu não posso deixá-la ir e deixá-la exposta ao perigo do qual eu a retirei! Não agora!
          Baixei os olhos para o chão, dando um ligeiro sorriso triste e falei:
          - Eu te amo muito mais do que você me ama.
          - Ah! Sim? E quer ir embora?
          - Eu te amo muito mais do que você me ama e isso agora ficou provado porque eu estou disposta a abrir mão de você para que você encontre uma fêmea da sua espécie para construir com ela uma família de verdade, uma família correta, compreende, enquanto que você só está pensando no que você deseja - eu ergui a voz, e quando dei por mim eu tinha lágrimas nos olhos, e com certeza foi a primeira vez na história em que um centauro foi visto com lágrimas nos olhos, e mesmo Newt olhou-me aturdido, eu já não sabia se devido a isso ou devido às minhas palavras, e ele demorou até conseguir dizer:
          - Mas você por acaso me perguntou se é isso o que eu quero, Memê? Eu não me importo de encaixar-me ou não dentro do que dizem ser "correto".
          - Eu sei que não - suspirei - Ninguém melhor do que eu sabe isso nesse mundo inteiro. Mas eu também sei que nem sempre o que nós queremos, ou o que achamos que queremos, é o melhor para nós, Newt. Apenas me escute. Você é um homem maravilhoso, e merece toda a felicidade desse mundo, mas eu não posso dá-la a você. Você precisa de uma mulher ao seu lado. De verdade.
          - Memê...
          - Escute, eu pedi. Apenas escute - e ergui-lhe as duas mãos em sinal de apaziguamento - Eu vejo que você não é feliz ao meu lado - ele fez tenção de dizer algo, mas eu novamente gesticulei com as mãos pedindo que ele se calasse, e ele obedeceu, ao que eu então continuei - Você pode estar contente, mas não feliz. Porque sempre falta algo. E eu não posso ser esse algo que falta, embora fosse tudo o que eu mais quisesse. As leis da vida são imutáveis, Newt. Nós não podemos passar por cima delas impunemente. Como eu te disse, a vida tinha um plano reservado para nós, a vida queria que minha raça fosse reconstruída, e ela foi. Agora, nós temos que ter a sabedoria de prosseguir com nossas vidas, com o que a vida deseja de nós.
          - E o que é que a vida deseja de nós agora?
          - Que você enriqueça a sua própria raça, e seja feliz, e que eu faça o mesmo.
          - Mas Memê... - as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto dele - Eu não posso simplesmente deixá-la exposta ao perigo novamente... Demorou 500 anos, mas eu te achei, não foi? Como eu te achei, outro pode te achar, e ao nosso filho... Eu não posso!
          - Viver é arriscado, Newt. Nós não podemos simplesmente nos esconder para sempre dentro de malas mágicas maiores por dentro. Porque a principal coisa que a vida quer e exige de nós é coragem.
          - Mas Memê... - ele chorava.
          - Quanto tempo mais você poderia nos proteger aqui? Trinta, quarenta, sessenta dos seus anos, Newt? Esse tempo para nós é nada. E além do mais, não haveria sentido  algum em eu ter sido preservada até o dia de hoje, até haver tido um filhote, se fosse para sermos mortos logo em seguida. Isso não vai acontecer.
          - Mas como você pode saber?
          - Eu não posso saber. Mas é a isso o que se dá o nome de , Newt.
          Cobrindo o rosto com as mãos, ele chorou em silêncio, e meu coração dentro do peito, cada vez menor e mais apertado, já não conseguia mais lidar com aquilo, e eu pedi-lhe, com voz terna:
          - Newt, por favor.
          - E se eu não deixá-la ir? - falou ele descobrindo os olhos de repente, passando com força as mãos pelo rosto, tirando as lágrimas dele - E se eu não concordar com isso tudo?
          - Você teria coragem de prender-me aqui contra a minha vontade? Depois de tudo? - e olhei-o bem no rosto, antes de sorrir de forma triste - Esse não é você, Newt - e dei alguns passos para o lado, pondo-me a olhar pela janela para a paisagem lá fora, ao que afastei de leve a cortina com a mão - Quando eu cheguei aqui eu julguei que isso era, como vocês dizem, um zoológico. Eu pensei que você era um explorador de animais, que iria cobrar ingresso pela nossa exposição, eu pensei que seria exposta como atração bizarra para pessoas curiosas que, logo que dessem-se conta do que eu realmente era, iriam me assassinar como tinham feito aos outros - e outra vez voltei meu rosto para o dele, olhando-no, encontrando-o a encarar-me de forma séria e ansiosa - Mas você não é assim, você é bom. E se você parar para pensar, você vai chegar à mesma conclusão que eu.
           - Mas eu não quero outra mulher, Memê... eu amo você - ele falou de forma triste, os braços compridos largados ao longo do corpo.
          - Você irá querer quando conhecê-la. Mas para isso, você precisa sair de dentro dessa mala, Newt. E eu não estou falando de abrir a tampa e pisar o mundo exterior, porque isso você faz. Eu estou falando de outra coisa, e você sabe do quê.
            Baixando os olhos para o chão por um momento ele permaneceu calado, até que finalmente reunisse as forças necessárias para dizer:
          - Digamos que eu faça isso, Memê. Digamos que eu a deixe ir, e levar nosso filho com você para sempre, digamos que eu conheça uma mulher, uma bruxa, uma trouxa, o que seja, e me case com ela, e forme uma família, que supostamente seria o que a vida deseja de mim, mas e quanto a você? - e somente então ergueu-me os olhos - O que a vida deseja de você?
          - Que eu reconstrua minha raça. Os metamorphosusvelticcus vão voltar a povoar o mundo, e ser uma grande manada como já foram um dia.
          Newt olhou-me por um momento como se não compreendesse minhas palavras, até que, abrindo bem os olhos e erguendo as sobrancelhas ele falasse, com descrédito estampado na voz:
          - Mas... Mas ele é nosso filho, Memê.
          - Newt, pense racionalmente, por favor. Você é um magizoologista. Você é um cientista. Você sabe como a natureza funciona. Embora eu tenha racionalidade humana devido a uma anormalidade minha, eu sou um animal, eu sou uma fera, e para nós é assim que funciona. Tudo o que a natureza precisa é de uma fêmea e de um macho, Newt. E agora, graças a você, ela tem isso. Nós metamorphosusvelticcus não estamos mais fadados à extinção. Estamos fadados a prosperar. Nós temos uma fêmea e um macho vivos agora. Compreende?
           De lábios trêmulos, ele baixou os olhos para o chão, erguendo as sobrancelhas, com ar incrivelmente desconcertado, justamente porque ele compreendia.
          - Então todo o amor que eu tenho por você foi somente para isso?
           - Somente? - eu sorri, de forma triste - Você fala "somente",  o fato de dar à raça de animais fantásticos, à qual você próprio afirma ser a mais fantástica de todas, a chance de continuar existindo? Você vai mesmo menosprezar tanto assim o seu papel? - e de forma cansada passei ambas as mãos pelo rosto, puxando em seguida os cabelos para trás - Talvez esse seja o seu maior feito de toda a sua carreira de magizoologista, à qual eu não duvido que será realmente brilhante, porque você é brilhante, e você vai tratá-lo como se fosse nada?
          - Quer parar de falar de modo tão frio e racional por pelo menos cinco minutos?
           O tom de voz dele e suas feições ao falar-me isso assustaram-me um pouco, e eu falei baixinho - Desculpe, mas eu sou um centauro hoje. E centauros são assim.
           - Mas você não é um centauro. Você é um metamorphosusvelticcus... Você... Você é a Memê - e seus olhos novamente encheram-se de lágrimas - A minha Memê. Só isso - e deu alguns passos na minha direção, olhando-me com olhos súplices - E é essa, e só essa, a opinião que eu quero: A da minha Memezinha. O que a minha Memezinha acha disso tudo?
          Levei alguns instantes para responder, buscando a resposta no fundo da minha alma, e quando finalmente encontrei-a, senti-me suspirar de leve, e olhando-o nos olhos respondi baixinho:
           - Eu sou-lhe eternamente grata por você ter-me devolvido a felicidade e a esperança e, acima de tudo, por você ter-me ensinado o que era o amor.
          E falando assim senti com um sobressalto de susto que uma lágrima caiu de meus olhos, e assim que a viu, Newt simplesmente deu-me as costas, andando a passos largos na direção da cozinha, de costas meio curvadas e rosto extremamente sério, enquanto eu de forma incrédula tomava-a de minha face com a ponta de meus dedos, pondo-me a olhá-los úmidos como se não acreditasse no que eu via, e quando vi Newt retornando de lá com uma cadeira, eu olhei-o assustada, não compreendendo o que ele iria fazer enquanto ele parava diante de mim, colocando-a no chão à minha frente e subindo sobre ela. De pé sobre a cadeira ele ficou um pouco mais alto do que eu, e olhando-me muito sério de cima ao que pegou-me o rosto com ambas as mãos, ele falou, de forma grave e decidida como eu jamais havia visto nele:
          - Tudo o que é preciso para que nos alinhemos hormonalmente e você se torne de novo inteiramente humana pra mim é que eu "entre no cio" de novo, não é? Pois então é o que eu vou provocar agora, porque, afinal de contas, eu sou um magizoologista que conhece o funcionamento de sua raça - e falando assim ele com força colou os lábios aos meus, beijando-me com voracidade ao que puxou-me para si, e dando um meio passo para a frente eu ouvi o som de meus cascos sobre o piso ao que fechei os olhos, abrindo os lábios para ele e beijando-no de volta com toda a paixão que eu tinha por ele, subitamente esquecendo-me de todo o resto.

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No próximo capítulo, Newt põe em prática um plano um tanto desesperado, mas que faz algum sentido.

Presa na Mala de Newt ScamanderWhere stories live. Discover now