30.

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Quando eu tirei as mãos do volante, percebi que ele estava sujo de sangue. Não tanto quanto as minhas mãos, minha camiseta e os respingos vermelhos no meu rosto. Toda aquela vermelhidão seca no meu corpo destoava diante do cenário à minha frente. Desci do carro e subi na beirada da ponte, encarando o mar azul-claro abaixo. Um passo para frente e eu pertenceria a ele, iria embora com as ondas.

Coloquei a mão no bolso e vasculhei até encontrar o pedaço de pano. Enrolei meus dedos entre a gravata e a arranquei de lá. Estendi-a entre as minhas mãos sujas, encarando aquele objeto que apertara o meu pescoço por tantos dias no Colégio São Dimas.

"Ligue-me quando estiver arrependido", meu pai dissera no primeiro dia. Soltei e permiti que o mar levasse a gravata e aquelas palavras. Observei enquanto o pequeno pedaço de pano enrolava com o vento, caindo em direção à agua. Diminuindo, diminuindo até aparecer uma pétala de rosa e até, enfim, não parecer mais nada.

3 MESES ANTES

Lembro das festas que meu pai promovia com os colegas de trabalho. Inúmeros homens de terno sentados no sofá, bebendo líquidos dourados nas taças afuniladas com azeitonas presas a palitos. As conversas que começavam baixas e transformavam-se em gritos conforme os copos vazios ocupavam toda a mesa. As mulheres de vestidos curtos que apareciam no meio da noite e sentavam nos colos de um ou outro, depois iam embora com os braços e pernas entrelaçados, contando as cédulas novas na bolsa.

Lembro das visitas da família de Catarina. A irmã mais nova correndo pela sala de estar, derrubando os quadros e molhando o chão com água da piscina. Também lembro do meu primo levando as amigas do colégio e, com a minha permissão, mentindo que aquela era a sala dele. Lembro das vezes que ouvi bronca por esquecer os controles do video game estirados no chão da sala. Lembro da minha tia apagando o cigarro no sofá. Lembro do meu pai jogando o paletó na mesa central. Lembro da minha avó indo dormir e esquecendo a televisão ligada.

Nenhuma bagunça era comparável com aquela noite. O corpo de Giancarlo estirado, o sangue escorrendo da nuca e formando uma poça ao redor da cabeça enfiada no chão. Os braços e pernas compridos faziam com que ele parecesse uma sombra deformada.

A porta, abaixo da escada, estava aberta com pilhas de caixas mal ordenadas pulando para fora. Roupas de bebê, fotos, quadros, talheres, objetos abandonados. Todas essas histórias tentavam fugir do pequeno espaço abaixo da escada. Aqueles objetos já não tinham mais importância.

Na escada, meu pai erguia uma mão enquanto apertava o braço enfaixado contra o peito. Três degraus acima, ao lado das malas prontas para viagem, meu primo apontava um revólver na nossa direção. Ele estava mais magro desde a última vez que nos vimos, mas tudo continuava no mesmo lugar: o cabelo ralo, as tatuagens espalhadas dos pés ao pescoço, o corpo esguio, o nariz volumétrico, os olhos castanhos e o queixo quadrado. Lucas ainda era Lucas. Tão Lucas que jamais seria capaz de puxar aquele gatilho.

— Vá com calma — meu pai disse, enquanto Lucas colocava os lábios para dentro e tentava segurar as lágrimas que faziam seus olhos brilharem — Você não precisa atirar na gente, Lucas.

— Preciso, sim! — ele cuspiu as palavras — Depois do que v-vocês fizeram.

— O que nós fizemos? — eu perguntei, tentando manter a calma. Acompanhando com o olhar o movimento das mãos trêmulas do meu primo, observei a arma subindo e descendo. Eu estava certo de que ele não iria atirar.

— Você matou uma mulher.

— Foi um acidente.

— Não prestou socorro.

A Última Gravata VermelhaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora