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Seis meses antes do suicídio - Anita

Querido diário — não sei se posso chamá-lo de querido depois de meses desabafando meus problemas no twitter ao invés de jogá-los em você. Não fique com ciúmes, eu costumo evitar canetas, pois mordo a tampa e isso entorta meus dentes. Não vamos ignorar o fato de que eu posso contrair alguma bactéria e morrer.

Seria uma morte lenta e dolorosa. Eu teria dor de barriga, vômitos. Meu rosto ficaria verde como o Grinch quando eu estivesse no caixão. Pálpebras costuradas, mãos no peito e um terço ondulando entre meus dedos. Seria ridículo, pois acho que peguei em um ou dois terços durante minha vida inteira.

Talvez rezar um terço fosse a melhor distração que eu conseguiria agora que estou trancafiada em um quarto do colégio interno São Dimas, mas eu não quero dançar conforme a música. Amanhã é o primeiro dia de aula e todos os estudantes deste colégio me enojam. Eles e suas malditinhas gravatas  poderiam ser protagonistas daquelas paródias mequetrefes de filmes de terror, nas quais as minorias morrem primeiro. Já reparou? O negro é sempre o primeiro a ir pro beleléu. E, quando tem um personagem latino, ele é o segundo. Sempre sobra a loira peituda no final, submissa e salva pelo loiro de abdômen definido.

Abdômen definido a.k.a. tanquinho. Meu pai adotivo gosta disso (mas não conte para ninguém). Descobri isso quando eu era pequena e estava aprendendo a ler. Tudo que encontrava jogado pela minha casa, eu lia: a bula do remédio, manuscritos de livros infantis, gibis da Turma da Mônica e as cartas de amor que ele trocava com outro homem. Lembro que sua voz desafinou de um jeito bem gay ao gritar "O que você está fazendo?!" quando ele me encontrou desdobrando as cartas.

Ao longo dos anos, tentei convencer meu pai de que ele poderia ser feliz sem precisar se esconder, mas não funcionou. Convenhamos que as cartas de amor eram mais bem escritas que os livros infantis. Ele vivia matriculado em um colégio interno chamado Santo Armário e continuou lá independente da minha insistência. Casou-se com uma mulher simpática que almoçava uma folha de alface por dia. Durante toda a refeição, ela apoiava uma mão no queixo. Com a outra, segurava o garfo e revirava o vegetal pelo prato.

Depois de alguns anos, eu fui o alface revirado para fora do prato. Eles não precisavam mais de uma filha adotiva, então me matricularam aqui, no Santo Inferno de São Dimas. Já não gosto de nada. Odeio as pessoas, odeio a gordinha que veio me receber, odeio o quarto, odeio a cama, odeio o terço que nem rezei e (talvez) eu odeie você, querido diário. Neste momento, só consigo olhar pela janela e pensar: será que alguém está tão na merda quanto eu?

Seis meses antes do homicídio - Bernardo

— Dezessete anos, já? Como o tempo passa rápido! A última vez que eu te vi, você tinha...

— Dezesseis, vó. Fui jantar na sua casa semana passada.

— Ah! Você sabe... Muita coisa acontece em uma semana... — minha avó apertou minha bochecha e jogou uma mecha de seu cabelo loiro recém-tingido para trás da orelha. Ela jamais admitiria que estava ficando velha. — Você está tão elegante. Continue assim, mas corte o cabelo. Está comprido. — ela ajeitou a minha gravata borboleta, deu um tapa leve no meu rosto e seguiu para cumprimentar outro grupo. Meu avô me cumprimentou sem questionar minha idade nem meu cabelo. Ele era um homem de poucas palavras e acredito que herdei isso dele.

Naquela manhã, fui acordado por meu pai. Com delicadeza, ele puxou uma cadeira ao lado da cama, me desejou feliz aniversário e disse que me daria um presente "para lá de especial": uma mãe. Segurei a risada enquanto ele contava que Catarina viria morar conosco.

A Última Gravata VermelhaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora