20.

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Observando as árvores passando como vultos na estrada, tentei lembrar como eram os cabelos da minha mãe. Não recordei qual era a cor, o comprimento e nem como ela os penteava. Na verdade, não sabia se ela sequer teve cabelos durante todos os anos que estivemos juntos. Na maior parte, ela estava doente, trancada no quarto, de onde não saía por semanas ou meses.

Não pensei nela até o dia posterior ao casamento e, quando me dei conta, só conseguia sentir a culpa por ter deixado que as memórias dela fossem embora. Senti culpa por andar pelos corredores da minha casa como se ela nunca tivesse caminhado por lá e por arrancar as flores do quintal como se ela nunca as tivesse cheirado. Ignorei todo o processo do luto e empurrei a saudade pela janela.

Parei em frente a entrada do Colégio São Dimas, respirando fundo. De todos os motivos que poderiam me levar para aquele local, eu finalmente encontrara o mais cruel: sou um assassino de lembranças.

* * *

Procurando maneiras de lidar com as situações ao meu redor, decidi separar meus problemas por caixas imaginárias. Na primeira, havia meu pai que, duas horas atrás, deixou a igreja sem se despedir e pediu para que Walter me trouxesse de volta ao colégio. Na segunda, o acidente e a injustiça com meu primo. Terceira, o assassinato de Anita e o envolvimento de Felipe no caso. Quando subi as escadas que levavam aos dormitórios e encarei os números tortos na parede do meu quarto, foi como se eu arrastasse as duas primeiras caixas para debaixo da cama e aberto a terceira.

Já arquitetara mentalmente o meu reencontro com Felipe de mil maneiras:

Eu poderia abrir a porta com uma voadora — arrancar o cigarro dele com um golpe ninja usando os dedos dos pés — e gritar: "Eu sei o que você fez no verão passado!", mesmo que o assassinato tenha acontecido no outono.

Eu entraria no quarto sorrateiro, uma perna atrás da outra e conversaria gentilmente com Felipe até a primeira trégua para uma boa indireta. Por exemplo, se ele dissesse "preciso matar a fome", eu responderia "pois é, você anda matando muita coisa ultimamente". Ok, essa ideia era boa somente na minha cabeça.

Entraria no quarto, sentaria sobre a minha cama, olharia nos olhos de Felipe e jogaria a real: "Fiquei sabendo algo sobre você e acho que deveríamos conversar". Seria maduro e sensato, tratando toda a confissão dele com a mesma naturalidade de um psicólogo.

Ficaria em silêncio e fingiria que não aconteceu nada. O que Felipe fez ou deixou de fazer não cabe a mim resolver — mesmo que isso envolva empurrar pela janela uma garota inocente que faz aparições repentinas no meu dia-a-dia.

Repensei todas as opções antes de pressionar a maçaneta para baixo. A partir do momento que eu e Felipe nos encontrássemos, seria quase impossível guardar toda aquela história para mim. Entrei no quarto de cabeça baixa e contei até três, mentalmente. Quando encarei o rapaz deitado na cama, todas minhas expectativas foram substituídas por dúvidas.

A cama de Felipe estava ocupada por um garoto que, pelo rosto completamente liso, não deveria ter mais de quinze anos. Tinha cabelos curtos, bem escuros e penteados que emolduravam um rosto tão fino quanto o resto do corpo. Ergui as sobrancelhas ao vê-lo tão bem acomodado na cama de outra pessoa.

— Quem é você? — perguntei, soando mais grosseiro do que pretendia. A pergunta correta seria: o que você está fazendo aqui? Ele levantou-se da cama e caminhou até mim, arrumando a franja com a palma da mão.

— Sou o Léo. E você é o Bernardo, né? — ele estendeu a mão, sorrindo. Tinha uma voz rouca que afinou um pouco ao dizer "Léo"; comum para garotos nessa idade — Enquanto você estava fora, ocorreram alguns reajustes. Agora, sou seu novo colega de quarto.

A Última Gravata VermelhaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora