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Cinco meses e meio antes do suicídio - Anita

Lembra daquela cena de "O Iluminado" na qual Danny está pedalando pelo hotel e vê duas gêmeas demoníacas de mãos dadas no fim do corredor? Eu vivi um momento muito parecido hoje.

Terminei de vestir este uniforme horrível que as freiras ditadoras nos obrigam a usar. Fechei a porta do quarto e encontrei a cena mais horrorosa da minha vida: duas gêmeas loiras e testudas, que parecem ter sido extraídas do desenho animado "Doug", paradas me encarando. A da direita mostrou os dentes (fiquei em dúvida se ela queria sugar minha alma ou era só um sorriso mesmo) e disse: "Anita! Que prazer encontrar você por aqui!".

Sei que uma regra universal determina que devemos falar apenas sobre as nossas próprias vidas nos diários. Mas, preciso falar um pouco sobre Luísa e Luana, as gêmeas demoníacas do fim do corredor. Os pais delas são os donos da editora que publica os livros infantis do meu pai. Logo, fui obrigada a conviver com elas desde quando meu pai decidiu que as porcarias que ele escreve deveriam ser de conhecimento público.

Elas sempre foram muito bizarras: quando o telefone tocava, escutavam a conversa na outra linha. Quando nossos pais se trancavam no escritório para discutir as futuras publicações, elas ajoelhavam ao lado da porta e tentavam espiar pelas frestas. O comportamento delas era completamente justificável; a mãe ia para minha casa com os bobes presos aos cabelos, segurando o telefone celular entre a orelha e o ombro, com a cabeça torta para não estragar o esmalte. Decorava o nome de todos os participantes do Big Brother no segundo dia de programa e debatia por horas "quem deveria ficar com quem" na novela das nove.

A primeira e única vez que tirei meus fones de ouvido para escutar a voz estridente daquela mulher foi há um ano. Ela estava relatando que no dia anterior se deparou com uma cena maravilhosa ao chegar em casa: um rapaz amarrado a uma cadeira da cozinha enquanto uma gêmea corria atrás da outra segurando um martelo de amaciar carne. Dois meses antes, Luísa começara a namorar um garoto e Luana, que também era a fim dele, começou a se passar pela irmã. Suspeitando que isso poderia estar acontecendo, Luísa prendeu o namorado em uma cadeira e esperou a irmã chegar. Quando ela chegou, foi perseguida pela irmã com o primeiro objeto que esta encontrou no armário da cozinha. Como resultado, as duas foram hospedadas em um colégio interno para adolescentes problemáticos.

E agora elas estavam paradas no corredor sentindo "prazer por me encontrar". Elas também disseram que estão com saudades, que podemos almoçar juntas e que vão me ajudar com tudo que eu precisar. Não importa o quanto elas exibam os sorrisos platinados para mim e balancem aquelas cascatas de cabelos loiros, eu ainda carrego uma lembrança. Quando tínhamos seis anos, uma delas me perguntou "Você não acha o seu pai meio estranho?". "Como assim, estranho?". "Assim: estranho" - e jogou uma carta sobre a minha mão. Existem maneiras de ferir alguém sem usar um martelo de amaciar carne.

Bernardo

Vinte e oito, vinte e nove... Refiz a conta mentalmente para ter certeza que amanhã seria mesmo o último dia da minha punição. Finalmente, outra pessoa teria que lidar com os chicletes colados embaixo dos bancos da igreja e com o pó das estátuas. Essa deadline também significava que eu era estudante do Colégio São Dimas há um mês.

Por incrível que pareça, criar uma rotina foi favorável ao meu corpo. As bolsas roxas sumiram debaixo dos meus olhos, meus músculos estavam voltando a aparecer e meu cabelo, crescendo.

- Acho que Jesus nunca viu esta igreja tão limpa antes. - Felipe jogou a vassoura de lado e sorriu - Somos uma dupla e tanto. - ele sorriu e eu retribuí, hesitando. Não tocamos mais no assunto sobre a "paixão dele por outra pessoa" desde a noite do incêndio. Ainda assim, eu hesitava toda vez que ele sorria ou demonstrava, de qualquer forma, afeto por mim. No almoço, as gêmeas trocavam olhares sempre que eu e Felipe interagíamos. Jorge estava me tratando com formalidade excessiva, o que pode ser tão rude quanto um cuspe na cara - Amanhã deveríamos fazer uma festa para comemorar. Não, não deveríamos. Nós vamos fazer uma festa.

A Última Gravata VermelhaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora