3 - A inspiração

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Existe uma arte, a primeira criada desde os primórdios da civilização, uma das mais importantes e sem a qual a humanidade não teria evoluído.

Tenho certeza que imaginou que esta referência é para a escrita, mas não é ela que vamos abordar, apesar dela estar intimamente ligada à evolução humana.

A arte a que me refiro é a de ensinar, sem ela todo mínimo conhecimento não seria disseminado e o mundo permaneceria o mesmo de séculos atrás e provavelmente ainda viveríamos em cavernas.

Anthony Ward, com seus quase 50 anos de idade, seu enorme bigode contrastando com a avançada calvície, era um dos grandes amantes desta arte de ensinar.

Ainda bem jovem já tinha o sonho de um dia lecionar numa grande escola, devorava os livros e se aplicava como ninguém aos estudos.

Se formou na universidade pública de Nottingham em Educação, onde também fez doutorado, e iniciou sua carreira como professor substituto na MES dos anos 90.

Imediatamente se apaixonou pela escola, pela sua belíssima arquitetura, localização, sistemática avançada de ensino, que dava uma liberdade inigualável e como sugere seu nome, moderna, para os professores atuarem.

Uma vez, quando já assumira as aulas como professor de línguas, comentou com um colega que a MES parecia ter vida própria, como se as paredes emanassem um calor reconfortante que parecia o abraçar.

— Esse pensamento só poderia vir de ti, meu nobre poeta! — respondera o outro professor.

Sim — pensou o Sr. Ward na época - esta escola parece falar comigo de uma forma poética, um sussurro feminino cantado no meio do silêncio da noite...

Hoje, agora como diretor da MES, um grande motivo de orgulho para o seu currículo acadêmico, não deixara de lecionar nas horas vagas, e o amor que possuía por esta primitiva arte só se comparava pelo que sentia pela escola.

Era ele que tinha a palavra final na contratação de novos docentes, apesar da instituição ter uma diretoria executiva formada por cinco membros, entre eles o Sr. Robinson, um rico empresário da região que investia um bom capital na MES.

O último contratado foi um professor de Artes, que veio a substituir a Srta. Alice Zummach, que finalmente resolveu fazer uso da merecida aposentadoria.

Adam Green foi admitido no Summer Term do ano letivo de 2010 e na primeira conversa com o Sr. Ward, já efetivado na função, ficou a par da principal tarefa que teria que realizar no período final das aulas em 2011.

Ele seria o responsável por montar a apresentação histórica da comemoração de 200 anos da MES, num evento que poderia contar com a participação do Príncipe de Gales.

Para tanto, passaram uma semana nas férias escolares, planejando e discutindo o melhor tema para esta apresentação.

Nesta semana em especial chegaram a invadir a madrugada adentro e certo dia resolveram parar de buscar pela ideia perfeita e deixar que a inspiração os tocasse, cada qual da sua forma.

Enquanto o Sr. Ward se aventurou na leitura, Adam realizou um passeio noturno pela escola.

Foi num dos seus corredores que teve a sensação de ouvir uma suave melodia sendo entoada.

Pensou a princípio que fosse a sua imaginação, mas como a melodia persistia, agora com uma linda voz em conjunto, seguiu no encalço da fonte, indo parar no anfiteatro.

Como era de se esperar, não encontrou ninguém no recinto, mas a canção persistia e o professor seguiu e se sentou na primeira fileira, fechando os olhos e se deixando levar pela canção, onde uma voz feminina clamava por seu amor.

Em nenhum momento Adam sentiu medo, somente deixou que sua veia artística fosse invadida e quando a melodia se encerrou, sabia exatamente o que fazer.

Retornou para a sala do diretor e relatou sem nada esconder sua recente inspiração e o Sr. Ward aprovou a ideia.

— É impressionante, não é mesmo, como essa escola parece ter um poder imenso sobre nossas escolhas... — comentou ele.

O professor Adam concordou com um aceno e pediu licença para se retirar.

Naquele restante da noite e durante o dia não dormiu um segundo sequer, se debruçou com unhas e dentes ao projeto da apresentação e com um par de olhos vermelhos exibiu orgulhoso na noite seguinte todo o escopo criado, que imediatamente foi aprovado pelo diretor.

— Adam, meu amigo, estou impressionado com a sua dedicação, eu jamais teria imaginado algo tão grandioso em tão pouco tempo.

— Sinceramente meu caro Anthony, foi muito mais fácil do que imaginei. Foi preciso somente me deixar levar pela envolvente inspiração que essa magnífica escola parece colocar lá dentro de nossas mentes. O amigo sabe do que estou falando...

— Sim, eu sei muito bem e lhe parabenizo pela sua sensibilidade. Qual o próximo passo professor?

Passaram horas e horas a fio planejando os detalhes, papéis, alguns importantes diálogos para a peça, e um cansado Adam se despediu novamente pela madrugada para se recolher para um merecido descanso.

No caminho para o dormitório porém, foi induzido a prolongar o passeio e na manhã seguinte o vigia o encontrou dormindo no anfiteatro.

O vigia ficou com pena de ter que acordá-lo, presenciou ele mesmo o árduo trabalho que o professor e o Sr. Ward realizaram nos últimos dias, quando fazia suas rondas.

Ficou ainda mais apenado, pois o professor Adam parecia sorrir e mexer levemente a cabeça, como que embalado por um sonho bom, mas era sua obrigação despertá-lo.

Teve que chacoalhar o professor para que este acordasse e o escutou falando um nome assim que abriu os olhos, um nome conhecido de uma garotinha, que ele mesmo já havia sonhado, mas pensou ser besteira e deixou pra lá.

— Vai ficar com uma tremenda torcicolo Sr. Green, é melhor terminar seu repouso em seu quarto.

— Catarina... você viu Catarina? —disse ele enquanto bocejava.

— O que disse professor? — questionou o vigia assustado.

Adam esfregou os olhos e terminou de acordar.

— Ah, obrigado, deixe-me tomar um desejum.

O professor saiu e o deixou sozinho. Após um arrepiou percorrer o seu corpo, decidiu sair dali, antes de continuar imaginando coisas.

Antes de ir embora comentou o ocorrido com o guarda que assumiria o serviço durante o dia, mas este tinha uma explicação na ponta da língua, carregada com seu sotaque francês.

*O Sr. nunca se deu ao trabalho de ler uma placa que fica na parte superior do palco. Ela parece fazer parte da armação de madeira, mas foi colocada ali depois, para dar nome ao anfiteatro.

— Não! — respondeu o cansado vigia secamente.

— Se tivesse lido não me faria perder tempo com bobagens.

Na próxima noite de serviço o vigia fez questão de procurar a placa e percebeu porque nunca a notara antes.

Ela foi encaixada perfeitamente com um primor tão grande que só foi possível notar as pequenas bordas da placa ao colocar a luz da lanterna sobre ela.

Também só conseguiu ler a inscrição quando a iluminou, surgindo em letras desenhadas uma breve dedicatória: Em Memória de Catarina Campbell.

Mesmo com esse conhecimento, preferiu não permanecer mais tempo sozinho naquele lugar, algo ali lhe causava uma estranha sensação, como se alguém o vigiasse escondido em algum ponto escuro.

E apesar de conhecer agora a origem daquele nome, aquele belo e delicado nome tirou seu sono ainda por várias noites...

Encenação MortalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora