Capítulo Oito - Parte 2

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A porta não tem chave. Noite passada isso não me incomodou. Pelo menos, acho que não, mas não consigo me lembrar direito do que aconteceu. O fato é: qualquer um pode entrar aqui. E eu estou presa em uma casa com bruxas, lobisomens e fey. Não acho que trancar a porta vai fazer muita diferença, mas não consigo parar de olhar para ela, esperando alguém entrar a qualquer momento. Algum monstro como o que eu vi na cozinha, algum dos monstros dos contos de fadas...

Paro atrás da mesa e começo a empurrá-la para a porta. Já falei que odeio móveis antigos? São tão pesados que é quase impossível uma pessoa normal carregar eles... E eu devia ter pensado que tinha alguma coisa estranha quando trouxeram ela para o quarto como se não fosse nada demais.

Desisto depois de empurrar a mesa por menos de dez centímetros. Daqui a pouco o barulho vai é fazer alguém vir aqui mesmo, então, segunda melhor opção: a cadeira da penteadeira. Coloco ela apoiada na porta, com o encosto debaixo da maçaneta. Não que eu ache que vá fazer muita diferença se alguém realmente quiser entrar aqui, mas... É melhor que nada.

Me sento na cama, encostada na cabeceira, dobro as pernas e passo os braços ao redor dos joelhos, abaixando a cabeça. Onde é que eu vim me meter? Como foi que meu pai conseguiu chamar a atenção justamente de um bando de... De o quê? Não sei nem como chamar eles. E não é justo colocar a culpa no meu pai. Ele pensou que estava indo ajudar alguém. Então, se tenho que por a culpa em alguém, ela é toda de Alexandre e dos outros, por não terem se escondido melhor. Se não queriam ser vistos, deveriam ter tomado mais cuidado.

Respiro fundo e engulo em seco. Isso está acontecendo. De alguma forma, isso é real. Puta merda.

Escuto o barulho de passos no corredor e levanto a cabeça, prestando atenção. Quem quer que seja para, e já estou olhando ao redor tentando ver alguma coisa que eu possa usar como arma. Se bem que... O que vou conseguir fazer? Depois do que aconteceu de tarde, sei pelo menos esta resposta: nada. Estou realmente à mercê deles, não importa o que qualquer um diga sobre eu estar segura ou não.

Os passos começam de novo, agora se afastando. Solto um suspiro aliviado e escuto uivos. Uivos. Como é que não pensei que isso era estranho quando meu pai contou o que tinha acontecido? Mas acho que estou acostumada demais com os cachorros de perto da minha casa. Lá, isso era normal. Agora, uivos numa região de mata? Nem tanto. E como é que eu ia imaginar o que estava acontecendo de verdade? Nunca nem ia passar pela minha cabeça que isso tudo fosse real. Posso ser uma leitora assídua de fantasia, a maioria das minhas ilustrações têm um toque mais fantástico, mas eu nunca...

Respiro fundo e solto o ar lentamente antes de abaixar a cabeça de novo. Preciso parar de pensar em círculos. Preciso pensar no que fazer, em como isso muda meus planos, mas não consigo. Continuo voltando para o mesmo lugar o tempo todo.

Queria que tudo isso fosse um pesadelo.

Escuto passos de novo e começo a rezar mentalmente para quem quer que seja passar direto pela minha porta. Não que isso vá adiantar. Só vampiros são afetados por qualquer coisa religiosa... Eu acho. E alguns tipos de fey? Não, o problema dos fey é com a crença e a falta dela.

E por que eu insisto em achar que qualquer coisa que eu tenha lido pode ser útil? Tá, eu sei, porque é a única coisa que tenho agora. Mas...

Os passos param na porta. Prendo a respiração, esperando ouvir uma batida ou qualquer coisa, mas quem quer que seja não faz nada. Continuo esperando, mas só silêncio... Talvez quem quer que seja passou direto e eu só não ouvi. É melhor pensar nisso do que imaginar que tem um deles parado do outro lado da minha porta. Muito melhor.

Escuto passos de novo, e desta vez a pessoa está andando depressa, quase correndo. Aperto os braços com força. Tenho que torcer para não entrarem. Não posso fazer nada se entrarem.

— Sai, André.

É Lavínia. A segunda pessoa... Porque obviamente a primeira pessoa que ouvi - esse André – ainda está parada na minha porta.

— Está sentindo isso? — A voz do homem que responde é familiar, mas não sei se é porque Lavínia me apresentou para ele ontem ou se porque é um dos que estava no bar. — Ela...

— Não é da sua conta.

E se eu ainda duvidasse de que Lavínia não era humana, aquela resposta ia servir de confirmação. Eu nunca teria coragem de usar aquele tom de voz com um deles.

— Eu posso fazer isso ser da minha conta. — Pelo visto o homem também não gostou do tom dela.

Espero uma resposta, mas se Lavínia fala alguma coisa é baixo demais para eu ouvir. E estou ouvindo mais passos se aproximando.

— O que está acontecendo aqui?

Alexandre. Será que vai todo mundo se reunir na porta do meu quarto? Por acaso tem uma placa de "humana para aterrorizar, pare aqui" pregada nela? Engulo em seco quando escuto um rosnado baixo.

— Vou falar com ela — Alexandre fala.

Não. Não, não, não. Ele não vai entrar. Não vai.

Nem eu sei de onde vem o meu pânico, mas sei que Alexandre é o pior deles. Ele é o chefe, afinal. O que quer que ele seja, vai ser pior que o que quer que seja que eu tenha visto na cozinha.

— Você não vai entrar.

Solto a respiração quando escuto Lavínia falar. Quero acreditar que ela vai afastar todo mundo, mas é Alexandre ali. Quase consigo sentir a tensão, mesmo que eles estejam do outro lado da porta fechada.

— Entre o que aconteceu no saguão e ontem à noite, ela já percebeu que ninguém aqui é humano — ela continua.

— Lavínia...

— Você não viu como ela estava quando me pediu para sair. Se não quer torturá-la, não entre.

E o que quer que Lavínia seja, ela está do meu lado. Pelo menos parece estar. Não que isso queira dizer que ela não é perigosa.

O silêncio do lado de fora se estendeu e então ouvi passos se afastando. Qual deles?

— O que sugere? — Alexandre pergunta.

Solto um suspiro aliviado sem nem saber o motivo. Então isso quer dizer que a outra pessoa que está ali é Lavínia.

— Chame Paula.

— Ela voltou para a cidade. E você sabe o que...

Alexandre se cala. O que quer que Lavínia esteja pensando, não quero ver Paula, e acho que ele sabe muito bem disso. Não depois do que ela fez comigo. Depois de ter mentido para mim por dois anos. Isso se ela não tiver feito mais nada... Porque é coincidência demais eu trabalhar para ela, uma bruxa, e vir para aqui.

E eu não quero pensar no que isso quer dizer. Não quero. Não vou.

— Tudo bem.

Não. Não, ele não tem nada que concordar com Lavínia. Não quero ver Paula. Nem nenhum deles. Quero distância. Só isso. Distância.

Que é a única coisa que não vou ter, levando em conta que não posso sair daqui.

E o que vai acontecer se eu fugir? Engulo em seco, vendo todos os planos que eu fiz desabarem. Não vou conseguir fugir. E, mesmo que consiga, duvido que eles vão ter alguma dificuldade para me achar. Sem falar que, para manterem o segredo por tanto tempo, provavelmente têm contatos espalhados por toda parte. Meu pai estava certo. Falar com a polícia está fora de questão, não tenho provas de nada e ninguém acreditaria em mim.

Escuto passos se afastando, e tenho certeza de que estou sozinha de novo. Pelo menos isso. Mas não vai durar, eu sei.

Encaro a cadeira apoiada na maçaneta. Por algum motivo, tenho certeza de que ela não vai parar uma bruxa.

Refém da Noite - DegustaçãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora