Capítulo Dois - Parte 1

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Enfiei a mão debaixo do travesseiro e desliguei o despertador do celular assim que ele começou a tocar. Já estava tão acostumada a acordar às sete e meia que nem precisava mesmo do despertador, mas sabia que o dia que decidisse desligá-lo eu ia perder a hora. Me sentei na cama, resmungando em voz baixa sobre acordar cedo, só para não perder o hábito mesmo. Marina murmurou alguma coisa e se mexeu na cama ao lado. Me virei para ela, torcendo para que não acordasse. Ela ainda podia dormir por mais uma hora, e levando em conta que estava se matando de estudar para o vestibular, eu não queria acordá-la antes da hora. Marina queria fazer medicina veterinária. Minha mãe ainda estava chateada por ela também ter inventado de querer ir para a cidade grande, mas pelo menos era um "curso útil", então Marina não ia ter que brigar tanto quanto eu para ir. E, levando em conta que meus planos não tinham dado em nada, eu pelo menos ia tentar fazer de tudo para que os dela dessem certo. Alguém nessa casa tinha que conseguir o que queria.

Saí do quarto pisando leve. Senti o cheiro do café fresco, o que queria dizer que meu pai estava em casa. Devia ter chegado depois que fui dormir. A essa hora minha mãe já estava na mercearia, que abria às sete, por isso normalmente era eu quem fazia o café. Se ela fizesse, até eu e Marina acordarmos já estaria frio, e café frio é uma coisa que tem que ser muito louco para gostar.

Meu pai estava sentado na mesa da cozinha, segurando uma xícara de café e encarando o jornal, já vestido para ir trabalhar. Ele estava supervisionando o trabalho em um dos condomínios que a construtora da família de Rick estava fazendo, um pouco além da cidade. Eu não fazia a menor ideia de como estavam conseguindo vender apartamentos em um condomínio fechado nesse fim de mundo, mas pelo que tinha ouvido eles até que estavam saindo depressa.

— Bom dia — falei, passando atrás dele para pegar minha caneca.

Ele grunhiu alguma coisa em resposta, sem desviar os olhos do jornal. Olhei por cima dele, tentando ver o que era tão interessante assim, mas ele estava lendo o caderno esportivo. Balancei a cabeça, sem entender. Meu pai nunca tinha sido muito fã de futebol ou qualquer outra coisa. Assistia os jogos, claro, e era cruzeirense, mas não era um daqueles fanáticos.

Dei a volta na mesa e me sentei na frente dele, esticando o braço para pegar a garrafa de café. Enchi minha caneca, cortei um pedaço de rosca e comecei a comer. Não ia tentar puxar assunto quando meu pai estava concentrado assim em alguma coisa e era época de obra grande. Fazer isso seria pedir para ouvir uma resposta daquelas. Mas, mesmo levando em conta que meu pai sempre ficava estressado quando estava supervisionando algum trabalho maior, ele parecia mais tenso que o normal. Não, mentira, não era bem isso. Ele não parecia tenso. Mas o silêncio estava desconfortável, e aquilo não era normal.

Eu já estava terminando de comer quando ele suspirou alto e me encarou.

— Você está feliz, Laura?

Parei de mastigar, surpresa com aquela pergunta. De onde aquilo tinha vindo?

— Como assim?

Meu pai balançou a cabeça.

— Só isso: está feliz?

Eu estava. Não estava? Quer dizer... Precisava estar. Eu tinha tudo. Uma boa família, uma vida relativamente confortável, um namorado que era o sonho de consumo da maioria das mulheres da cidade, um trabalho que gostava... Estava feliz, não é? Tinha que estar, depois de todas as brigas para conseguir o que queria – ir estudar fora.

— Você fez tanta questão de ir estudar em BH e se formar — ele continuou, ainda me encarando, sério. — E então voltou para cá, para a mesma vida de antes. É isso mesmo que queria?

Abaixei a cabeça e engoli em seco. Não conseguia responder. Na verdade, não podia, depois de todas as brigas que meu pai comprou para convencer minha mãe a me deixar ir para Belo Horizonte. Foi ele quem me apoiou o tempo todo. Como podia falar que não estava feliz? Que nada daquilo era o que eu queria? Tinha conseguido o máximo possível e me formado, pelo menos. Mas não no que eu queria. E meus sonhos de viajar pelo mundo... Bom, iam continuar sendo só sonhos mesmo.

Refém da Noite - DegustaçãoWhere stories live. Discover now