Capítulo Um - Parte 1

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Se tem uma coisa que eu odeio, é conferir estoque. Não, mentira. Eu até que gosto bastante. É uma delícia sair revirando os livros nas estantes. Ou, pelo menos, era. Mas naquele dia eu já estava de mau humor só de pensar em sair da minha mesa. Só queria ficar sentada ali, lendo ou desenhando. Aquela era a maior vantagem de trabalhar em um sebo em uma cidade do interior: quase todas as vendas eram feitas pela internet. Eu não precisava falar com clientes e passava a maior parte do horário de trabalho lendo.

A desvantagem estava sentada na minha frente. Alto, com um corpo definido sem exagero e um rosto quadrado com linhas fortes que eu adorava desenhar, cabelos castanho claros longos o bastante para eu enfiar a mão, olhos cor de mel e uma boca que era a definição da perfeição. Henrique, meu namorado, tinha decidido me visitar no trabalho, pela terceira vez na semana – e era quarta-feira.

Eu realmente gostava dele. De verdade. Só não tinha paciência para aquele tipo de coisa. Estava no meu ambiente de trabalho. Mesmo que eu ficasse o dia todo à toa, estava em horário de trabalho. Ele não tinha nada que estar ali. Aquilo me incomodava demais, mas não adiantava falar nada. Da última vez que falei, Rick passou quase uma semana chateado, porque só estava querendo passar mais tempo comigo, que aquilo era porque se importava comigo, e... Suspirei, encarando as planilhas na tela do computador. Sempre podia mandar uma mensagem para Paula, minha chefe, e pedir para ela vir mandar Rick ir embora. Mas, se fizesse isso, ele ia passar dias falando mal dela. E não ia adiantar nada eu pedir ele para parar, também.

Suspirei de novo e me inclinei para trás na cadeira. Eu realmente precisava conferir o estoque. Mas se levantasse e fosse mexer nas estantes, Rick ia ir atrás de mim. E aí ia querer aproveitar que estávamos fora de vista para dar uns beijos. Já tinha acontecido antes e eu não queria repetir. Estava trabalhando, qual era a dificuldade dele em entender aquilo?

O pior é que eu nem podia reclamar daquilo com ninguém. A última vez que comentei a respeito com minhas amigas, chateadíssima e quase chorando de raiva, elas falaram que eu era sem coração. E Gisele ainda completou com o "você tem sorte de ter um namorado atencioso assim, devia aproveitar". Não queria aquela atenção, obrigada.

Às vezes eu achava mesmo que eu tinha algum problema. Cheguei a pensar em procurar tratamento umas tantas vezes, mas sempre desisti. Não era possível que querer que meu namorado não aparecesse no meu trabalho fosse alguma coisa errada. Para mim, era o óbvio: eu estou no trabalho. Você não trabalha comigo. Não tem que estar aqui. Óbvio. Tão óbvio que chegava a ser estúpido. Mas não. Eu estava errada. Eu tinha algum problema, porque aquilo só queria dizer que ele era atencioso, que se preocupava e queria ficar perto de mim.

— Lau?

Balancei a cabeça e me virei para Rick. Tinha a impressão de que não era a primeira vez que ele me chamava, mas estava com a cabeça longe.

— Desculpa, Rick, estava pensando.

— Você sempre está pensando.

Dei de ombros. Não era uma mentira.

— Mas e então, nenhuma chance da sua chefe te deixar sair mais cedo?

Voltei a encarar o monitor e as planilhas. Devia ter ido conferir o estoque, mesmo que fosse ficar o tempo todo discutindo porque não queria ficar "dando beijinhos".

— Nenhuma. Meu horário é até as seis — falei.

Rick abriu os braços.

— Mas você está à toa aqui!

— À toa ou não, meu horário é até as seis.

E eu merecia um prêmio pelo meu autocontrole.

Refém da Noite - DegustaçãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora