Capítulo Seis - Parte 1

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Acordei pensando que tinha tido um pesadelo estranho e realista demais. Meus olhos estavam ardendo, como se eu tivesse chorado muito, mas não me lembrava de ter feito isso. Nem no pesadelo.

Então olhei para o lado e vi duas malas grandes apoiadas na parede. Minhas malas. Engoli em seco, sentindo meus olhos arderem ainda mais, e enfiei a cabeça no travesseiro. Ele ainda estava úmido... Eu tinha apagado enquanto estava chorando. Só então consegui me lembrar do restante da noite: de ter começado a fazer as malas pensando seriamente em fugir dali, fazer qualquer coisa que me deixasse ser livre de uma vez. Livre de verdade. Mas não podia. Não se o que meu pai tinha contado era verdade. E eu não tinha coragem de apostar a vida de toda a nossa família nisso. Precisava ir com Alexandre, fazer o que ele queria, pelo menos por algum tempo... Até achar outra opção

Depois daquela conversa eu precisei de um bom tempo para acreditar no que estava acontecendo – ainda não estava acreditando, na verdade, se a minha primeira impressão tinha sido que tudo era um pesadelo. Quando busquei as malas no quarto dos fundos e fui começar a organizar minhas coisas, minha mãe já estava subindo a escada. Corri de volta para o meu quarto, sem ter condições de aguentar outra briga com ela. Ainda ouvi ela chamando meu nome e começando a vir na minha direção, com passos pesados, quando meu pai saiu do quarto deles. E então ouvi os dois discutindo.

Meu pai falou que eu estava indo viajar – que eu tinha juntado dinheiro e comprado tudo já, e que ninguém tinha falado com ela porque sabíamos que ela não ia deixar. Parei de tentar entender os gritos depois disso e me concentrei em fazer as malas. Marina entrou no quarto pouco depois e começou a me ajudar sem falar nada. Melhor assim, nenhuma de nós queria correr o risco de chamar atenção. Era melhor deixar os dois brigarem até se cansarem e torcer para não se lembrarem de nós.

Só depois que minha mãe já tinha entrado no quarto deles, batendo a porta, e Marina tinha ido tomar banho, meu pai voltou e me explicou sobre a tal viagem. Tinha sido ideia de Alexandre, uma boa desculpa para eu desaparecer sem que ninguém estranhasse. Ninguém podia suspeitar do que estava acontecendo, então eu precisava me lembrar daquilo. Por sorte, não era muito fã de redes sociais ou de fotos. Eu continuaria com meu celular: não podia desaparecer completamente, senão alguém desconfiaria. Mas precisava lembrar da história da viagem e contar ela para qualquer pessoa com quem conversasse. Seria melhor se montasse um roteiro imaginário para garantir.

No fim das contas, eu tinha passado horas encarando a janela, esperando Marina dormir. Não queria colocar ela no meio disso tudo. Ela tinha que seguir em frente, alguém tinha que conseguir o que queria da vida. Só depois que ela dormiu consegui chorar de verdade, e os galos já estavam cantando quando eu apaguei, completamente esgotada.

E ali estava eu, num sábado de manhã, com malas prontas para uma viagem que era tudo o que eu mais sonhava... Se fosse verdade. Ao invés disso, ia ser trancada no casarão de Alexandre. O mesmo Alexandre que tinha elogiado minhas ilustrações e me acompanhado até em casa na noite anterior porque ele e Paula estavam preocupados com o que Rick podia fazer.

Não fazia sentido.

Me virei na cama, encarando o teto. Pensando bem... Talvez eu pudesse tirar algo útil disso tudo. Podia aproveitar o tempo como refém para investir nas minhas ilustrações sem ninguém para me distrair. Talvez eu estivesse sendo inocente, mas era uma possibilidade. Podia começar a ir atrás de trabalhos como freelancer, começar a juntar dinheiro para quando saísse de lá sumir no mundo e fazer o que sempre sonhei. Respirei fundo e me sentei na cama, abaixando a cabeça por um instante. Era bem possível que nem me deixassem ficar com meu notebook. Mas se deixassem, aquilo era uma possibilidade real.

De repente, eu não estava mais com tanto medo. O que tinha a perder, de qualquer forma? E talvez... Talvez pudesse ter uma vida de verdade quando conseguisse sair de lá.

Respirei fundo e assenti, levantando a cabeça. Se não estava disposta a apostar a vida da minha família, pelo menos tinha uma opção... Alguma coisa para me manter pensando num depois enquanto tentava dar um jeito de sair de lá.

— Laura? — Meu pai chamou da sala, em voz baixa.

Suspirei.

— Acordada, pai — respondi no mesmo tom.

— E eu também, não precisam falar baixo.

Me virei para Marina. Ela ainda estava deitada, mas tinha se virado na cama para me encarar e levantou as sobrancelhas.

— Achou mesmo que eu ia deixar você ir embora sem nem se despedir?

Revirei os olhos, mas estava sorrindo. Do jeito que ela estava falando parecia que eu nunca mais ia voltar. E, na verdade...

Encarei a janela, sem realmente ver nada, e engoli em seco. Que garantia eu tinha de que ia voltar?

— Vou terminar de fazer o café — meu pai falou numa voz cansada.

Assenti, mesmo que ele não fosse ver, ainda encarando a janela. O que eu estava fazendo? O que ia acontecer comigo?

Ouvi Marina levantando da cama e então senti meu colchão afundando quando ela se sentou atrás de mim. Sem dizer nada, ela passou um braço ao redor da minha cintura. Coloquei uma mão em cima da dela, respirando fundo. Era por isso que eu tinha aceitado essa loucura. Porque não era justo que toda a minha família morresse – que Marina morresse, agora que estava começando a correr atrás da sua vida. E eu não tinha nada a perder.

— Eu ouvi o suficiente para saber que é melhor não perguntar — ela começou, falando em voz baixa. Balancei a cabeça depressa e ela apertou minha barriga antes de eu conseguir falar alguma coisa. — Não vou perguntar. Só... Não faça nenhuma loucura, tá? Deu pra perceber que essa viagem não é o que parece. E eu quero ver você de novo, então não desapareça.

Assenti, tentando não chorar de novo.

— Não vou — consegui falar.

Marina apertou minha barriga de novo antes de se levantar e abrir a porta do seu guarda-roupas. Precisei de alguns minutos para conseguir me controlar. Não adiantava mais chorar. Já tinha aceitado o acordo, agora precisava ir até o fim... E descobrir o que ia acontecer. Enxuguei as lágrimas com as costas das mãos logo antes de Marina passar por mim e sair do quarto, e só então fui procurar minhas roupas para me trocar. Queria já estar pronta a hora que viessem me buscar... Fosse lá que hora fosse.

Quando cheguei na cozinha, Marina estava comendo e meu pai estava encarando uma xícara de café como se fosse a coisa mais importante do mundo. Murmurei um "bom dia" enquanto pegava minha caneca e a enchia, me sentando. Não estava com fome e não adiantava nem tentar me forçar a comer alguma coisa. Tinha a impressão de que nem o café ia descer pela minha garganta.

Um apito de mensagem me fez olhar para os lados, mas meu celular estava na minha mochila, no quarto. E não era o de Marina, porque ela tinha mudado o toque. Gelei quando vi meu pai tirar seu celular do bolso. Não precisava olhar para o seu rosto para saber o que aquilo queria dizer.

— Já chegaram? — Perguntei, tentando tomar mais um gole de café. A bebida desceu queimando pela minha garganta, e não era porque estava quente.

Meu pai não falou nada enquanto digitava uma resposta para a mensagem. Só depois de enviar ele levantou a cabeça.

— O carro já está aqui na porta.

Suspirei e coloquei minha caneca de café de volta na mesa. Não ia conseguir beber o resto mesmo. E era estranho como eu estava calma, como se nada demais estivesse acontecendo. Como se eu não estivesse jogando minha vida fora. Mas não havia mais nada a fazer. Nem mais nada a sentir. 

Refém da Noite - DegustaçãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora