VI

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Nove anos atrás.

fora a última vez que eu vira aquele homem.

Aparentemente não tinha sido tempo o bastante para que eu esquecesse seu rosto, no entanto.

— Mark, está tudo bem com você? — A voz de minha mãe soou em algum lugar da casa.

— Sim, mãe. Só estou um pouco cansado. — Menti. — Vou dormir, boa noite! — Menti novamente.

— Não vai nem tomar banho? — A voz em algum ponto da casa me alcançara novamente. Eu não respondi. Apenas fiquei lá, deitado em minha cama, olhando para o teto.

Pensando....

                             ***

Lizzie tentara me ligar durante toda a manhã de domingo; como eu dormi até às duas da tarde, nem tomei conhecimento de suas ligações. Não que isso fizesse diferença, também. Eu não a teria atendido, de qualquer forma. O sol brilhava forte lá fora, seus raios penetravam no quarto, através da cortina cinza, e espalhavam sua luz de forma irregular por todo o abafado espaço.

Decidi me levantar (passei a dormir de cueca para minimizar futuros incidentes) e me arrastar até o banheiro. Tomei um banho rápido, me vesti e desci até a cozinha em busca de algo para comer. O dia estava realmente lindo, apesar do calor infernal.
A casa vazia revelava que minha provavelmente teria ido visitar minha tia Sarah, que adoecera recentemente, como ela costumava fazer aos domingos. Me sentei em frente à TV comendo o que sobrara de uma pizza de sexta à noite, subitamente me lembrando de que esta era a ultima semana das férias de verão. "E eu aqui assistindo um urso polar rolando na neve na TV", pensei, quando meu celular tocou ao meu lado no sofá.

— Olá, mãe. — Atendi, terminando de comer uma última fatia de pizza velha, enquanto o urso, que aparentemente era uma fêmea, rugia ameaçadoramente para a câmera na TV.

— Que bom que acordou, filho. — Começou minha mãe — deixei lasanha no forno pra você, dá uma olhada quando estiver com fome! — Tarde demais, eu pensei enquanto mastigava os remanescentes da pizza de dois dias atrás.

— Obrigado, mãe! Olharei sim. — Eu respondi. Ela se despediu rapidamente, me dizendo para não deixar louça suja e que voltaria à noite. Resolvi desligar a TV e estava subindo para o meu quarto novamente quando a campainha tocou. Parei por uns instantes na escada, pensando se deveria ignorar e continuar o percurso até o quarto. "Nada de bom bate à porta num domingo", eu pensei. Suspirei, desanimado, e fui até a porta da frente.

A garota parada lá não disse nada ao me ver, ficou apenas me olhando com uma expressão triste em seu rosto.

— Sim...? — Eu disse, não estava com muita paciência para momentos como aquele.

— Posso entrar...? — Perguntou a garota, logo em seguida mostrando um pacote que estava escondendo às costas.

— Trouxe cheeseburger...

                               ***
— Lucy me disse que fez do jeito que você gosta, não vai comer...? — Perguntou a garota sentada à minha frente na pequena mesa da cozinha, se referindo ao pacote pardo deixado sobre a bancada. Eu ainda estava com raiva, e vê-la ali na minha frente só piorava a situação. Lembranças do homem voltaram à minha memória, as recentes e as de muito tempo atrás, formando uma grande confusão em minha cabeça. Definitivamente não era uma boa hora para conversar com ela.

— Não estou com fome — , eu respondi. Estava evitando olhar para ela, e ela provavelmente havia notado isso, apenas decidira não comentar nada a respeito. O som dos ponteiros do relógio pendurado na parede era a única coisa que impedia o completo silêncio no ambiente. Pude senti-la desconfortável com a situação, enquanto se remexia em sua cadeira, mas não olhei para ela, preferi manter os olhos fixos em algum ponto da mesa.

— Me desculpe por ontem — ela começou a dizer. Vi suas mãos ansiosas se entrelaçarem sobre o ponto da mesa para o qual eu estava olhando, talvez em uma tentativa de controlar o tremor, eu pensei. — Não devia ter te tratado daquela forma.

Repentinamente, veio à minha mente a lembrança de Lizzie no pequeno quintal de sua casa na noite anterior, dizendo que eu devia ir embora. Seu corpo tenso e rígido enquanto me dirigia um olhar fulminante. "Incrível como pude me esquecer daquela cena", eu pensei enquanto me lembrava mais claramente do dia anterior. Até então, o encontro com o homem na casa de Lizzie era tudo em que eu havia conseguido pensar. Comecei a me perguntar se ela sabia quem ele era, enquanto ainda mantinha os olhos fixos em minhas mãos.

— Tudo bem, não tem problema —, eu respondi. — É a sua casa, afinal de contas — completei após um momento. Ela bufou, pude sentir sua impaciência através de seus dedos tamborilando sobre o granito da mesa, num aparente esforço para manter a calma.

— Sim, Mark — começou ela, pausadamente. — Mas isso não me dá o direito de ser grossa com ninguém lá, — Pude sentir seus poderosos olhos presos em mim. — Principalmente com você... — Concluiu ela. Eu não fazia ideia do que ela queria ouvir de mim, e eu realmente não estava com humor para esse tipo de conversa no momento.

— Tá, tudo bem — eu disse, querendo encerrar logo o assunto. — Sem ressentimentos — Olhei para ela pela primeira vez e me forcei a dar um sorriso, percebendo em seguida, pelo modo como ela me olhou, que não havia sido muito convincente. Havia algo familiar no modo como Lizzie me olhava; uma angústia que eu já vira antes, como os olhos de alguém que carrega muito dentro de si para poder suportar. Alguém prestes a desabar a qualquer momento.

Então eu me lembrei que minha mãe costumava ter olhos assim...

— Ele quer conversar com você, Mark... — Disse ela em um tom baixo, desviando os olhos para seus dedos longos, esticados sobre a mesa. Então ela sabia quem ele era, afinal de contas. Aquilo já era demais para mim, eu não suportaria falar sobre isso naquele momento, acima de tudo com ela. Me levantei da mesa e fui até a torneira pegar um pouco de água, enchendo o copo e tomando de uma só vez. O relógio continuava incessantemente do seu lugar na parede, sempre nos lembrando do tempo que estávamos perdendo. Eu podia sentir seus olhos em minhas costas, me encarando, esperando para ver como eu reagiria. — Você... — Começou ela, dando uma leve tossida quando sua voz falhou. — Você não precisa fazer isso... Se não quiser... — De repente vieram à minha mente um milhão de teorias. Teorias sobre as quais eu talvez estivesse me recusando a pensar até então. A mais promissora delas era uma que deixava bastante claro que Lizzie só se aproximara de mim por causa daquele homem, talvez tentando me aproximar dele. Naquela época eu ainda não sabia que teorias nem sempre se aplicavam na prática.

— Lizzie, você tem que ir — eu disse, ironicamente repetindo o que ela havia me dito no dia anterior. Eu não conseguia mais suportar estar com ela, falando sobre tal assunto. A menina baixou os olhos, e eu pude notar as lágrimas que começaram a descer por seu rosto, quando me virei. Elas deixavam longas trilhas molhadas por suas bochechas altas, minúsculas gotas se prendendo em seus longos cílios. Ela pareceu hesitar por alguns instantes, enquanto passava uma mão no rosto, desfazendo a trilha de lágrimas. Então, respirou fundo, finalmente parecendo tomar uma decisão.

— Me desculpe, Mark — disse ela, logo antes de sair a passos largos em direção à porta da frente. Pude escutar o barulho da porta batendo com força quando ela a fechou, ao passar. Após isso, um silêncio perturbador tomou conta da casa. Apenas o maldito relógio ainda se fazia ouvir. Fiquei um tempo parado, contando os segundos pelo ritmo dos ponteiros, de pé na cozinha vazia. Veio até mim o cheiro do cheeseburguer trazido pela garota, me fazendo lembrar de sua presença solitária em cima da bancada. Minha cabeça doía, como se agulhas espetassem meu crânio de dentro para fora. Eu precisava me deitar um pouco mais, pensei, enquanto pegava o pacote na bancada e jogava-o no lixo.

Como alguém que conheci há tão pouco tempo conseguia bagunçar minha vida dessa forma?

Com amor, Lizzie [Pausado]Where stories live. Discover now