V

48 11 0
                                    

Não havia sinal de tristeza no rosto sardento da menina ruiva que conversava alegremente com seus novos vizinhos, apesar de sua aparente vulnerabilidade demonstrada apenas há algumas horas antes. Todos ao seu redor pareciam se encantar pela facilidade com que ela conversava e interagia com eles, inclusive eu, que estava encostado à uma parede na sala, observando-a.

— Encantadora, não é? — Era a mãe dela, uma mulher muito bonita, que de forma alguma aparentava ter mais do que trinta anos. Ruiva, nariz comprido e bochechas altas, que davam uma forma rasgada aos olhos azuis escuros. Não havia dúvidas de que ela possuía algum laço sanguíneo próximo com Lizzie; se tivesse que apostar sem as conhecer, no entanto, diria que eram irmãs. Ela enxugava as mãos em um pano, observando enquanto Lizzie pegava um garoto no colo e girava-o pela sala apinhada de móveis e convidados, o garotinho dando gargalhadas de prazer.

— Sim — eu disse, esboçando um sorriso involuntário. A mulher suspirou, colocou o pano no ombro e ficou me olhando, com um sorriso triste em seu rosto.
— Precisamos conversar, Mark. — Ela olhou de relance para a menina ruiva que estava sendo atacada sem piedade por três crianças risonhas. — Acho que agora é um bom momento, venha comigo. — Disse, fazendo um sinal com a cabeça em direção à porta dos fundos.

Já estava anoitecendo, o pequeno quintal gramado estava vazio sob as primeiras estrelas que pontilhavam o céu. Ela se sentou em uma mesa mais afastada, com um suspiro de alívio. — Ah, finalmente posso me sentar um pouco. — Eu me sentei de frente para ela, que me olhava fixamente com seus incômodos olhos azuis, como os herdados por sua filha. — Sua mãe esteve aqui até pouco antes de vocês voltarem do lago. — Eu devo ter transparecido surpresa, porque logo em seguida ela explicou, sorrindo. — Aparentemente Lizzie a convidou quando foi chamá-lo essa manhã.

— Ah, entendo. De qualquer maneira, me desculpe por nos atrasarmos para o almoço. — Eu disse, tentando explicar o motivo de não chegarmos a tempo, como o combinado. — Acabamos perdendo a noção do tempo — concluí, envergonhado. A mulher deu uma curta gargalhada, seus olhos se iluminaram em um brilho de malícia.

— Sei bem como são essas coisas, não se preocupe. — Ela piscou um olho pra mim em sinal de compreensão, o que me deixou ainda mais envergonhado. — Não acho que sua mãe tenha se importado também, ela disse que não via a hora de você fazer amigos. — Ao perceber que eu ainda estava sem coragem de encara-la, ela tocou meu queixo com um dedo indicador e levemente levantou minha cabeça, me forçando a olhar para ela. — Não há pelo quê se envergonhar, Mark. — Disse a mulher com um sorriso tranquilizador. — Desde que você a trate bem, isso jamais será um problema. — Algum pensamento súbito passou por sua mente, fazendo com que sua expressão mudasse instantaneamente. — Oh, eu ainda não lhe disse meu nome, não é?— Perguntou ela enquanto passava as mãos pelos cabelos vermelhos, prendendo-os em um coque frouxo no alto da cabeça. — Me chamo Melissa. — Apresentou-se a mulher. — Caso Lizzie ainda não tenha lhe dito. — Estendeu uma mão de dedos longos e elegantes em minha direção, em uma apresentação um tanto tardia. Eu segurei-a por alguns instantes e pude sentir o calor que se desprendia delas. — Você tem mãos frias. —Comentou ela, assim como sua filha alguns dias atrás. Ficamos em silêncio, enquanto ela me encarava com uma expressão de dúvida, como se pensasse em como iniciar a conversa. — Bom, Mark... — Ela suspirou, finalmente tomando coragem para começar. — Existem certas coisas, sobre Lizzie, e acho que sobre mim também, que acredito que você deveria saber de antemão... —Disse ela. Ficamos em silêncio novamente, enquanto ela olhava para o céu, ao crepúsculo. Eu estava pensando sobre o quão sério seriam as tais coisas que eu deveria saber, quando uma voz vinda da porta dos fundos da casa desviou minha atenção.

— Mãe, Richard chegou. — A voz soou um tanto fria, com uma autoridade difícil de se imaginar em uma garota de dezesseis anos.

A mulher à minha frente se levantou, seu corpo ficando subitamente tenso. As duas olhavam fixamente uma para a outra, como se conversassem telepaticamente. Melissa acenou resignadamente com a cabeça uma vez, em um gesto que me pareceu ser de concordância, e se virou para mim: — Teremos que conversar outra hora, Mark — disse ela, com um pequeno sorriso, colocando uma mão em meu ombro. — Cuide bem dela, rapaz. — Piscou novamente um olho para mim e saiu caminhando em direção à porta, onde Lizzie estava parada, com os braços cruzados, como se estivesse de guarda no local. — Ele é todo seu agora — disse a ruiva mais velha, quando a mais nova abriu passagem para que ela entrasse. Lizzie ficou olhando para dentro por um tempo, antes de se virar e caminhar até mim.

— Sobre o que falavam? — Perguntou ela, parando a meio caminho da mesa onde eu estava, me encarando com uma expressão vazia e os punhos cerrados com força aos lados do corpo, esperando minha resposta.

— Hum... Não muita coisa. — Comecei a dizer. — Ela queria conversar sobre nós dois. Disse que tinha que me contar algo, aí você chegou...

Ela continuou me encarando, os olhos fixos nos meus, com uma expressão assustadora. Provavelmente lendo minha mente, como sempre, eu pensei.

— Você tem que ir, Mark. — Ela disse, abaixando a cabeça e olhando para seus pés, calçados em sandálias trançadas até os joelhos. A brisa do início da noite balançando suavemente seu vestido azul e seus cabelos presos. — Já está tarde.

Eu fiquei surpreso ao ouvi-la me mandar embora daquela maneira, mas, ainda assim, decidir não questionar. Era a casa dela, afinal de contas.

— Tem razão — eu disse enquanto olhava as horas em meu relógio. Me levantei, passando direto por ela, em direção à porta. Ela não fez menção de me seguir, enquanto eu entrava na casa e me dirigia à porta da frente. Ao chegar à sala, notei que Melissa ainda estava se despedindo dos últimos convidados que restavam no local, congestionando a porta pela qual eu pretendia passar. Após alguns instantes, ela pareceu me notar ali, de pé, esperando e acelerou suas considerações finais aos vizinhos retardatários.

— Já está indo? — Ela perguntou, após  despachar o último convidado e fechar a porta atrás de si. Pareceu consternada quando eu confirmei com um aceno de cabeça. — Droga. — Esbravejou ela tirando uma mecha de cabelo vermelho, que escapara de seu coque improvisado, dos olhos. — Foi por minha causa, não é? — Perguntou ela, mais para si mesma do que para mim. — Espere aqui, não vá ainda. —Ordenou ela, indicando um sofá próximo com a cabeça e dirigindo-se com passos apressados até à porta dos fundos. Fiz o que ela mandou e me sentei, de cabeça baixa, olhando para minhas mãos cruzadas em meu colo. Esperando não ser a causa de um conflito entre mãe e filha.

Alguns minutos depois, ouvi passos na escada às minhas costas, demonstrando que havia mais alguém na casa. Me virei e vi um par de pernas descendo os degraus que levavam ao segundo piso. Pernas que pertenciam à um homem que acabara de alcançar o primeiro piso.

— Melissa...? — Chamou o homem se virando para a cozinha, procurando pela mãe de Lizzie.

— Hum... Ela está lá fora com a Lizzie, senhor. — Eu disse. Ao me ouvir, o homem dirigiu sua atenção para a sala, local onde eu estava. Ele ficou repentinamente pálido ao me ver, de pé, olhando para ele. Imagino que eu deva ter ficado da mesma cor ao vê-lo, parado a poucos metros de mim...

A pessoa que eu mais odiava em toda a minha vida.

— Meu Deus... Mark...? — Disse o homem, ainda surpreso, sem saber o que dizer, apenas olhando fixamente para mim. — Mark... — Ele tentou falar novamente, quando eu me apressei em direção à porta da frente e saí em disparada pela rua, correndo deliberadamente em direção à minha casa.

O que ele estava fazendo ali?

Eu me perguntava, sem obter nenhuma resposta que fizesse sentido. Sentia uma raiva crescente dentro de mim, a mesma raiva que sentira alguns anos atrás.

O que aquele homem estava fazendo ali...?

Com amor, Lizzie [Pausado]Where stories live. Discover now