IV

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Sábado....

OITO HORAS DA MANHÃ....

Achei importante contextualizar isso porque alguém teve a audácia de bater à porta do meu quarto nesse dia e horário.
Sim, depois de eu ter passado a noite jogando vídeo game e indo dormir apenas às seis da manhã.

— Mark, você tem visitas — dizia a voz da minha mãe que entrava por meus ouvidos e ia até o meu cérebro em uma onda de sinapses que sempre me despertavam.
Mães possuem uma estranha habilidade de nos acordar apenas com o som de sua voz. Pelo menos a minha costumava ter esse poder sobre mim, não importando o quão profundamente eu estivesse dormindo, eu sempre acordava ao ouvir sua voz. Um poder que também pode ser uma maldição.

— Mande embora e diga pra voltar depois! — De preferência em uma hora decente, eu pensei enquanto tentava voltar a dormir.

— Oi, Mark! — Uma voz feminina, que não era a da minha mãe, soou do lado de fora da porta. Me sentei abruptamente na cama ao som daquela voz.

Seria um sonho?

— Acho que você terá que dizer isso pessoalmente, querido. — Ouvi a voz da minha mãe novamente, o som dos passos nos degraus da escada indicava que ela estava se afastando, me deixando sozinho com aquele ser do lado de fora da porta. "Como essas adolescentes estão atrevidas hoje em dia." Eu a ouvi resmungar em direção ao andar de baixo.

Definitivamente não era um sonho, ela estava mesmo aqui. Embora eu não fizesse ideia do porquê.

— Mark, posso entrar? — Perguntou a garota girando a maçaneta da porta.

— Não! — Eu gritei desesperadamente, pulando da cama em direção à porta. Tarde demais. A porta se abriu e Lizzie deu de cara comigo, instantes antes de eu alcançar a porta para impedi-la.
— Bom dia! — Disse a garota, sorrindo. Depois abaixou os olhos e seu rosto repentinamente adquiriu um tom de vermelho semelhante à cor de seus cabelos. — Oh, então você dorme pelado...

***

— Olá, Mark! — Disse a ruiva mais velha quando passei pela porta dos fundos da casa em direção ao pequeno quintal, onde a mulher estava organizando algumas mesas e cadeiras. — Que bom revê-lo! — Disse enquanto deixava de lado a organização e abria os braços para me receber em um abraço. A mulher cheirava a algo adocicado, como canela.

— Você não está com uma cara muito boa, está tudo bem? — Perguntou a mulher.

— Sim, só não dormi muito essa noite. — Eu respondi. A mulher sorriu e disse para eu ficar à vontade no local, antes de se virar e retomar a organização do pequeno espaço gramado. Pelo que Lizzie explicara no caminho, elas dariam uma pequena festa para conhecer melhor os vizinhos.

Devo admitir que não vi muito sentido nisso, eu mesmo ainda não conhecia boa parte deles e não via motivo para tal. Mas talvez fosse apenas eu sendo antissocial demais.

Lizzie parou à porta dos fundos, aparentemente procurando por algo, que pareceu encontrar quando me viu. Caminhou até a mesa onde eu estava e colocou uma xícara com algo quente à minha frente.

— Vai te ajudar a se manter acordado — Ela disse, ainda evitando me olhar nos olhos depois do incidente da manhã.

— Obrigado — eu disse, pegando a xícara e tomando um pequeno gole do café preto e quente, que desceu queimando pela minha garganta. Ficamos em silêncio enquanto eu tomava vagarosamente a amarga bebida trazida por Lizzie, até que eu resolvi falar:

— Vocês precisam de ajuda com a organização? — Eu me atrevi a olha-la naquele momento, achei curioso vê-la sem seu velho jeans e suas camisas cortadas. Ela estava com um vestido de um tom claro de azul, que contrastava com o azul escuro de seus olhos, acima das bochechas altas e sardentas. Algum antepassado dela certamente foi um viking, eu pensei. Seus cabelos estavam presos em um rabo de cavalo e ela usava pequenos brincos brilhantes em cada orelha.

— Não, não se preocupe. Ainda temos tempo e provavelmente minha mãe terminará bem antes. — Ela olhou para a mulher arrumando um arranjo de flores em um vaso e sorriu. — Ela é muito perfeccionista, sabe? Melhor não nos metermos em sua organização. — A mulher percebeu o olhar da filha e sorriu de volta.

— Por que não vão dar uma volta? Só não se esqueçam de voltar antes do almoço, isso aqui ainda vai levar algum tempo. — Disse a mulher. Era um bonito sábado de verão, não haviam muitas nuvens no céu, que brilhava da cor do vestido da garota sentada à minha frente.

— Quer ir até o lago? — Perguntou a dona do vestido cor de céu. Eu confirmei com um aceno de cabeça, ainda hipnotizado por tamanha perfeição.

***

— Em que você acredita, Mark? — Perguntou a garota sentada à minha frente, enquanto jogava pequenas pedras, que pegara pelo caminho, no lago que se estendia amplo à sua frente. Eu estava deitado na grama, olhando para o céu em um estado parcial de sonolência.

— Em que sentido? — Eu perguntei, num esforço para me manter acordado. A garota parou de atirar pedras e se deitou ao meu lado, virei a cabeça e a vi fitando o céu, pensativa.

— Acha que é pra lá que iremos, quando morrermos?— Eu virei minha cabeça para o céu novamente, pensando. Eu não acreditava em Deus, mas não tinha certeza se era isso que ela queria saber.

— Difícil dizer. — Eu comecei. — Tem muita coisa lá. — Eu apontei o imenso azul com um movimento de cabeça. Pude sentir ela se virar para mim, esperando que eu me explicasse. — Estrelas, planetas, galáxias... — E o vazio, eu pensei. Um imenso e, talvez, infinito vazio.

— Nada se perde, tudo se transforma... — Ela disse, voltando a olhar para o céu. — Li isso em algum lugar, e por algum motivo não consigo parar de acreditar nisso. — Ela suspirou lenta e longamente, absorta em seus pensamentos, antes de continuar:

— Talvez nossa consciência também não se perca, sabe? — Ela não esperou por uma resposta.  — Talvez simplesmente se transforme em... Em alguma outra coisa... — Disse ela, como se essa outra coisa fosse algo de menor importância. Tive a impressão de que, de alguma forma, isso era algo que a atormentava.

— Isso é algo que a preocupa? — Eu perguntei, sem me virar para ela. Ela não respondeu, ignorou a pergunta e começou a cantar uma canção antiga, que eu não ouvia há muito tempo:

"Because all of the stars,
are fading away.
Just try not to worry,
you'll see them someday..."

Sua voz possuía um efeito relaxante em mim. Como se eu pudesse dormir para sempre e esquecer de tudo, desde que o ar nao parasse de passar por aquelas magníficas cordas vocais, produzindo aquele hipnótico som. Ela parou de cantar, seu silêncio me trazendo de volta ao mundo real, e se virou para mim, perguntando:

— É isso o que você quis dizer? — Parecendo não ter tomado conhecimento da minha pergunta anterior, ela continuou: — As estrelas... — Ela sussurrou próximo ao meu ouvido, fazendo meu corpo inteiro arrepiar. — Nós as veremos... algum dia...?

— Não sei... — Eu respondi, olhando para um céu claro e sem nuvens e pensando se algum dia eu subiria naquela direção. — É isso o que você deseja?— Perguntei, ela pareceu notar essa pergunta.

— Eu só não quero desaparecer, deixar de existir por completo... — Foi a minha vez de me virar para ela, nossos rostos tão próximos que eu podia sentir sua respiração.

— Você não vai. Enquanto alguém se lembrar de você, você continuará a existir. — Eu disse, tentando não soar muito clichê. — Mesmo que seja apenas como uma representação na mente de alguém... — Na minha, por exemplo, eu pensei.

— Você se lembraria de mim, Mark? — Sua voz saiu baixa, apenas um sussurro. Fui capaz de perceber cada palavra se formando em seus lábios. Eu pensei em tantas respostas para essa pergunta, mas nenhuma delas se concretizou em palavras. Tudo o que pude fazer foi ficar olhando dentro de seus olhos, na esperança de que aquele intrigante e misterioso órgão tingido de azul pudesse ler minha mente mais uma vez. Lágrimas começaram sair de dentro deles, caindo e molhando a grama com seu líquido salgado. Minha próxima sensação foi a de seus lábios encostando nos meus, pude sentir o gosto de suas lágrimas, não mais um privilégio exclusivo do gramado abaixo de nós, enquanto sentia sua língua tocar a minha.

A garota lera meus pensamentos novamente.

Com amor, Lizzie [Pausado]Onde histórias criam vida. Descubra agora