Capítulo 40

60 5 1
                                    

Alexander voltou alguns dias depois. As olheiras escuras e a cerrada barba negra davam-lhe o aspecto de um delinquente, mas, quanto ao resto, ele parecia estar aguentando bem. Tatiana sentiu-se mais aquecida por dentro. Na verdade, vê-lo.... bem, o que ela podia dizer? Dasha estava na entrada, os braços dele ao seu redor, enquanto Tatiana os observava mais atrás. E ele a observava. – Como vai você? – ela disse num tom débil. – Estou bem – ele disse. – E vocês, minhas meninas? – Não tão bem, Alexander. Não tão bem. Venha, veja nossa mãe. Morreu há cinco dias. A Prefeitura não recolhe mais os corpos. Não podemos removê-la. Por trás de Dasha, Alexander passou perto de Tatiana e deslizou a mão enluvada em seu rosto. Ele envolveu Mamãe na capa do uniforme branco de camuflagem e a carregou, cuidando para não escorregar no gelo escadas abaixo, colocou- a no fulgurante trenó vermelho e azul de Tatiana e empurrou-a até o cemitério de Starorusskaia. As duas meninas andando ao lado dele. Removeu os cadáveres congelados no portão de entrada para passar o trenó e levou Mamãe bem lá dentro, onde suavemente a estendeu na neve. Quebrou dois galhos pequenos e os segurou na frente de Tatiana, que, com um pedaço de barbante, os amarrou no formato de uma cruz, colocada em seguida sobre o corpo de Mamãe. – Você sabe alguma prece, Alexander? – perguntou Tatiana. – para nossa Mamãe? Alexander olhou Tatiana bem nos olhos e depois balançou a cabeça. Ela o observou fazendo o sinal da cruz e balbuciando algumas poucas palavras debaixo de sua fria respiração. Quando saíam do cemitério, Tatiana perguntou: – Você não sabe nenhuma oração? – Em russo não – ele sussurrou. De volta ao apartamento ele parecia mais animado. – Meninas – ele disse –, vocês não vão acreditar nas delícias que eu trouxe. – Fez uma pausa. – Só pra vocês. Ele levara um saco de batatas, sete laranjas, que encontrou sabe Deus onde, meio quilo de açúcar, um quarto de quilo de cevada, azeite de linhaça, e, sorrindo para Tatiana com todos os dentes, três litros de óleo de motor. Se fosse possível, Tatiana teria sorrido de volta. Alexander mostrou-lhe como gerar luz com óleo de motor. Depois de derramar algumas colheres de chá desse óleo entre dois pires, ele colocou um pavio umedecido dentro, deixando a ponta fora, e acendeu o pavio. O óleo iluminou uma área grande o suficiente para costurar ou ler. Ele então saiu e voltou meia hora depois com um pouco de lenha. Disse que encontrou feixes quebrados no porão. Ele buscou lhes água. Tatiana queria tocá-lo. Dasha, porém, encarregava-se disso. Não saía do lado dele. Tatiana não podia nem olhar em seus olhos. Ela pegou um pote, fez um pouco de chá e nele colocou açúcar: que maravilha! Cozinhou três batatas e um pouco de cevada. Partiu o pão. Comeram. Mais tarde, ela esquentou água na bourzhuika, pediu a Alexander um pouco de sabonete e lavou o rosto, o pescoço e as mãos. – Obrigada, Alexander – disse Tatiana. – Alguma notícia de Dimitri ? – De nada – ele respondeu. – Não, não tenho nenhuma. E vocês? Tatiana balançou a cabeça. – Alexander, meu cabelo está caindo – disse Dasha. – Olhe. – Ela arrancou um tufo negro. – Dash, não faça isso – ele disse, virando-se para Tatiana. – O seu cabelo também está caindo? – Cálido era o seu olhar sobre Tatiana, quase como uma bourzhuika. – Não – ela murmurou suavemente. – Meu cabelo não pode se dar ao luxo de cair. Estaria careca amanhã. Contudo, estou sangrando. – Ela olhou para ele e limpou a boca. – Uma laranja talvez ajude. – Coma todas as sete, mas devagar. E, meninas, não saiam à rua à noite. É muito perigoso. – Não sairemos. – E tranquem sempre as portas. – Sempre trancamos. – Então como entrei aqui tão fácil? – Foi Tania. Ela deixou a porta aberta. – Pare de jogar a culpa na sua irmã e tranque as malditas portas. Depois do jantar, Alexander pegou uma serra na cozinha, então serrou a mesa do jantar e as cadeiras em pequenos pedaços que coubessem na bourzhuika. Enquanto ele trabalhava, Tatiana ficava ao seu lado, em pé. Dasha sentava no sofá, enrolada em cobertores. O quarto estava frio. Elas não entravam mais nesse quarto. Dormiam, e comiam, e sentavam no outro quarto, onde as janelas não estavam quebradas. – Alexander, quantas toneladas de farinha nos fornecem agora? – perguntou Tatiana, pegando os pedaços serrados e empilhando-os num canto. – Não sei. – Alexander! Suspiro profundo. – Quinhentas. – Quinhentas toneladas? – Sim. – Quinhentas parece muitíssimo – Dasha disse. – Alexander? – Oh, não. – Quantas toneladas de farinha eles nos deram durante as rações de julho? – Tatiana queria saber. – O que é? Agora eu sou Pavlov, o secretário de alimentação de Leningrado? – Responda. Quantas? Profundo suspiro. – Setenta e duas. Tatiana nada disse, olhando Dasha sentada no sofá. Dasha está se retirando, Tatiana pensou. Seus olhos permaneciam focados sem piscar em Alexander. Com uma voz cortante, toda trêmula, Tatiana disse: – Veja o lado positivo, quinhentas toneladas hoje duram muito mais do que antes... Na semiescuridão, Alexander e as meninas sentavam amontoados no sofá, em frente da bourzhuika, que irradiava uma ponta de luz através de sua pequena porta de metal. Alexander se acomodava entre Tatiana e Dasha. Tatiana usava seu casaco acolchoado, que Mamãe costurara para ela, e calças acolchoadas. Com o chapéu, cobriu as orelhas e os olhos. De fora, expostos ao ar do quarto, ficavam nariz e boca. Sobre as pernas dos três, um cobertor. A certa altura, Tatiana pensou que ia cair no sono e inclinou a cabeça à direita, em cima de Alexander. A mão dele descansou no colo de Tatiana. – Dizem por aí – Alexander falou – "Eu gostaria de ser um soldado alemão, com um general russo, armamento britânico e rações americanas." – Eu ficaria apenas com as rações americanas – disse Tatiana. – Alexander, agora que os americanos entraram na guerra, vai ficar mais fácil para nós? – Sim. – É um fato consumado? – Totalmente. Agora que os americanos estão na guerra, há esperança. Tatiana ouviu a voz de Dasha. – Se nós sairmos dessa, Alexander, eu juro que deixamos Leningrado e vamos para a Ucrânia, ao mar Negro, a algum lugar onde jamais faça frio. – Não existe um lugar assim na Rússia – ele respondeu. Por cima de seu uniforme ele usava um casaco cáqui acolchoado, suas orelhas cobertas com um shapka. À insistência de Dasha, Alexander respondeu: – Não. Estamos muito ao norte. O inverno é rigoroso na Rússia. – Existe algum lugar na Terra onde a temperatura não fique abaixo de zero no inverno? – Arizona. – Arizona. Isso fica na África? – Não – ele suspirou suavemente. – Tania, você sabe onde fica o Arizona? – América – Tatiana respondeu. O pouco de calor do quarto vinha da pequena janela do fogão. E de Alexander. Ela pressionou a cabeça no braço dele. – Sim. É um estado na América – ele disse. – Perto da Califórnia. É terra de deserto. Quarenta graus no verão. Vinte graus no inverno. Todos os anos. Nunca congela. Nunca tem neve. – Pare com isso – disse Dasha. – Isso é puro conto de fadas. Conte a Tatiana. Estou muito velha para contos de fadas. – É a verdade. Nunca. Com os olhos fechados, Tatiana ouvia o ritmo ressonante da voz de Alexander. Ela queria que ele nunca parasse de falar. Você tem uma boa voz, Alexander, ela pensou. Posso me imaginar flutuando à deriva, só ouvindo sua voz, calma, medida, corajosa, profunda, conduzindo-me ao eterno descanso. Vá, Tatia, vá. – Isso é impossível – disse Dasha. – O que eles fazem no inverno? – Usam camisas de mangas compridas. – Oh, pare com isso – disse Dasha. – Agora eu sei que você está inventando isso. Tatiana levantou o chapéu e olhou a tremulante luz de cobre do fogão. – Tatia? – Alexander disse baixinho. – Você sabe que estou dizendo a verdade. Você gostaria de viver no Arizona, a terra da pequena primavera? – Sim – ela respondeu. – Como você a chamou? – Dasha perguntou com voz neutra e apática. – Tatiana – Alexander disse. Dasha balançou a cabeça. – Não. O acento estava no lugar errado. Tátia. Nunca ouvi você chamá-la assim. – Realmente, Alexander – disse Tatiana, de novo cobrindo o rosto com o chapéu. – O que deu em você? – Não me importa. Chame-a como quiser. – Dasha deu de ombros e levantou-se para ir ao banheiro. Tatiana continuava sentada ao lado de Alexander, mas sua cabeça não mais repousava nele. – Tatia, Tatiascha, Tania – ele sussurrou. – Você me ouve? – Ouço você, Shura. – Coloque sua cabeça aqui de novo. Continue. Assim ela fez. – Como você está se segurando? – Veja você. – Estou vendo. – Ele pegou sua mão enluvada e a beijou. – Coragem, Tatiana. Coragem. Eu amo você, Alexander, pensou Tatiana. No dia seguinte, Alexander voltou à noite e, muito contente, disse: – Meninas, sabem que dia é hoje, não sabem? Elas o olharam sem nada entender. Tatiana havia ido ao hospital por algumas horas. Não se lembrava do que lá fizera. Dasha parecia ainda mais fora de foco. Tentaram um sorriso e não conseguiram. – Que dia é hoje? – perguntou Dasha. – Véspera de Ano Novo! – ele exclamou. Elas o olharam. – Vamos, olhem, eu trouxe três latas de tushonka. – Ele sorriu. – Uma para cada um. E um pouco de vodca. Mas só um pouco. Não se deve beber muita vodca. Tatiana e Dasha continuaram olhando para ele em silêncio. Por fim, Tatiana disse: – Alexander, como vamos saber quando é Ano Novo? Só temos o despertador cujo alarme está atrasado há meses. E o rádio não funciona. – O meu tempo é militar – disse Alexander apontando para o seu relógio de pulso. – Eu sempre sei, com precisão, que horas são. E vocês duas precisam ficar mais animadas. Esta não é a maneira de se comportar numa comemoração. Já não havia mais mesa. Colocaram a comida nos pratos, sentaram-se no sofá, na frente da bourzhuika, e fizeram o seu jantar de Ano Novo c o m tushonka, um pouco de pão branco e uma colher de sopa de manteiga. Alexander deu a Dasha cigarros, e a Tatiana, com um sorriso, um pequeno pedaço de doce que ela, contente, colocou na boca. Conversavam baixinho, quando Alexander olhou o relógio e serviu um pouco de vodca. No quarto escurecido, levantaram-se por alguns minutos, antes da meia-noite, e brindaram ao ano de 1942. Eles contaram os últimos dez segundos, fizeram tim-tim e beberam. Alexander então beijou e abraçou Dasha, e Dasha beijou e abraçou Tatiana, dizendo: – Continue, Tania, não tenha medo, beije Alexander no Ano Novo. – Voltou a sentar-se no sofá, enquanto Tatiana levantava o rosto para Alexander, que a ela se inclinou e, com todo cuidado e suavemente, a beijou nos lábios. Era a primeira vez que os lábios dele tocavam os lábios dela, desde aquele dia na catedral de Santo Isaac. – Feliz ano novo, Tania. – Feliz ano novo, Alexander. Dasha estava no sofá, olhos fechados, numa mão, um drinque; na outra, um cigarro. – Viva 1942 – ela disse. – Viva 1942 – ecoaram Alexander e Tatiana, os dois permitindo-se um olhar antes que ele sentasse ao lado de Dasha. Mais tarde, deitaram juntos na cama. Tatiana perto da parede, virada para Dasha, virada para Alexander. Restarão ainda algumas camadas?, ela pensou. Pouca vida sobrou, como pode alguma coisa cobrir nossos restos?

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde as histórias ganham vida. Descobre agora