Capítulo 16

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  Esperançosa, Tatiana correu ao trabalho na manhã seguinte. Elaaprendera a ignorar a vil presença das tropas da milícia da NKVD, deuniforme azul, paradas nas portas da frente de Kirov, com seus riflesobscenos, andando pela fábrica, quase marchando, carregando suasarmas perto da cintura. Alguns deles olhavam-na quando ela passava,sendo essa a única vez em sua vida que ela desejou ser ainda menor doque já era e menos fácil de notar.Com suas fisionomias graves e duras, eles olhavam Tatiana, malpiscando, enquanto ela piscava com frequência ao passar rápido por elese atravessar as portas rumo ao relativo anonimato da linha de montagem.Para que os trabalhadores não caíssem na monotonia e, dessa forma,ficassem negligentes em qualquer fase da produção do KV-1, elestrocavam de lugar a cada duas horas.Tatiana foi remanejada do setor de roldana, que levantava o tanqueainda sem esteiras para colocá-lo no trilho, para o de pintura da estrelavermelha num tanque terminado e nivelado, pronto para entrar emprodução. Ela pintava com spray não só a estrela vermelha, comotambém as palavras brancas POR STÁLIN! no casco que se destacava contraa brilhante pintura verde.Ilya, um menino magrinho e de cabelo à escovinha, não deixavaTatiana em paz depois que Alexander parou de vir à noite. Ele fazia todotipo de perguntas que ela, muito educada, respondia, mas no fim acabousendo um pouco rude.– Eu devo me concentrar no meu trabalho – ela dizia a ele,perguntando-se como ele sempre conseguia um lugar perto dela, nãoimportasse quantas vezes ela fosse transferida durante o dia paradiferentes responsabilidades na construção dos tanques. No refeitório,Ilya pegava o seu prato e sentava-se ao lado dela e de Zina, que não osuportava e lhe dizia isso com frequência.Hoje, porém, Tatiana sentiu pena dele. 

– Ele está solitário – ela disse, mordendo a costeleta de carne,passada no molho, a boca cheia. – Parece que ele não tem ninguém.Fique, Ilya. – E assim Ilya ficou.Tatiana podia se dar o luxo de ser generosa, ela mal podia esperar odia terminar. Depois de ter ido ver Alexander no dia anterior, ela tinhacerteza de que ele iria vê-la em Kirov depois do expediente. Ela vestia suasaia mais leve e a blusa mais suave e até mesmo tomara um banho pelamanhã, embora tivesse tomado outro na noite anterior.Naquela noite ela passou rápido pelas portas de Kirov, soltos ebrilhantes seus cabelos dourados, o rosto limpo e rosa, virando a suacabeça sorridente, ofegante à procura de Alexander.Ele não estava lá.Já passava das oito, e ela se sentou no banco até as nove, as mãosno colo. Então levantou-se e foi para casa.Não havia nenhuma notícia de Pasha, e Mamãe e Papai estavamdesconsolados. Eles choravam de forma intermitente. Dasha não estavaem casa. Deda e Babushka, lentos, empacotavam seus pertences.Tatiana subiu ao telhado e lá se sentou, observando balões dirigíveisflutuarem como baleias brancas através do céu do norte, ouvindo Antone Kirill, que liam Guerra e Paz, de Tolstoy, evocando o irmão Volodyaperdido em Tolmachevo. Tatiana meio que ouvia, pensando em seuirmão Pasha perdido em Tolmachevo.Alexander não veio vê-la. Ele não tinha notícias. Ou as notícias quetinha eram ruins e ele não podia encará-la.Tatiana, contudo, sabia averdade: ele não viera vê-la porque ele ali terminara. Terminara com ela,com as suas posturas infantis, terminara com aquela parte de sua vida.Eles haviam sido amigos caminhando no Jardim de Verão, mas ele era umhomem, e agora terminava tudo.Ele estava certo, claro, em não vir. E ela não choraria.Mas enfrentar Kirov dia após dia sem ele e sem Pasha, também,enfrentar noite após noite sem ele e sem Pasha, enfrentar a guerra,enfrentar a si própria sem Alexander e sem Pasha, tudo isso provocavaem Tatiana um penetrante vazio, de tal forma que ela quase gemia emvoz alta, bem na frente de Anton e Kirill, os dois rindo.Ela precisava só de uma coisa agora: repousar os seus olhos nomenino que com ela respirara o mesmo ar durante dezessete anos, namesma escola, na mesma classe, no mesmo quarto, no mesmo útero. 

Elaqueria de volta o seu amigo, o seu gêmeo.Tatiana pensou que poderia sentir Pasha enquanto estava sentada notelhado, sob o céu escurecido. As noites brancas haviam terminado emdezesseis de julho. Seu irmão não estava ferido. Ele esperava que Tatianafosse por ele, e ela não falharia. Ela não ficaria como o resto da família,sentada, fumando, preocupando-se. Nada fazendo. Tatiana sabia: cincominutos com o coração leve de Pasha e ela esqueceria grande parte doúltimo mês.Ela esqueceria Alexander. E ela precisava fazer alguma coisa paraesquecer Alexander.Depois que o Anton e Kirill foram dormir, Tatiana desceu, pegou umpar de tesouras de cozinha, e começou, sem dó nem piedade, a cortarseu cabelo loiro, vendo-o cair em longos fios na pia comunitária. Depois opequeno e encardido espelho mostrava somente um vago reflexo. Tudoo que ela via eram os seus lábios amoados e seus olhos tristes e vaziosque agora brilhavam mais verdes sem o cabelo que emoldurava o seurosto. As sardas do nariz e de debaixo dos olhos faziam-se ainda maisproeminentes. Ela parecia um menino? Melhor ainda. Ela parecia maisjovem, mais frágil, o que pensaria Alexander ao vê-la agora sem cabelo?Quem se importava? Ela sabia o que ele pensaria. Shura, Shura, Shura.Quase ao raiar do dia, Tatiana vestiu o único par de calças bege queencontrou, embrulhou um pouquinho de bicarbonato de sódio e peróxidopara os dentes, a escova de dentes – nunca viajava sem a escova dedentes –, pegou o saco de dormir de Pasha, que ele usava noacampamento, escreveu um bilhete de uma sentença para a família e foia pé para Kirov.

 Durante sua última manhã no trabalho, Tatiana foi transferida para osmotores a diesel aparafusando as velas de incandescência na câmara decombustão, as quais aqueciam o ar comprimido nos cilindros antes que sedesse a ignição. Ela era muito boa nesse setor da linha de montagem,porque fez isso muitas vezes antes, e assim trabalhava despreocupada,enquanto durante toda a manhã lutava com os seus nervos.Na hora do almoço, ela foi ver Krasenko, levando junto uma animadaZina, e disse a ele que ambas queriam integrar o Exército dos Voluntáriosdo Povo. Há mais de uma semana Zina vinha falando em aderir aosVoluntários.Krasenko disse a Tatiana que ela era muito jovem.Ela persistiu.– Por que você está fazendo isso, Tania? – Krasenko perguntou comuma voz compreensiva. – Luga não é um lugar para uma menina comovocê.Ela disse a ele que sabia como andavam mal as coisas lá. Os quadrosde aviso na fábrica anunciavam: PARA LUGA – ÀS TRINCHEIRAS!Ela disse saber que meninos e meninas de catorze e quinze anostrabalhavam nos campos cavando trincheiras. Ela e Zina queriam fazertudo para ajudar os soldados do Exército Vermelho. Muda, Zina assentiu.Tatiana sabia que precisava de uma dispensa especial de Krasenko.– Por favor, Serguei Andrevich – ela disse.– Não – ele respondeu.Tatiana persistiu. Ela disse a Krasenko que tinha direito a uma licença,começando amanhã, e que iria a Luga de um jeito ou de outro se fossepreciso. Ela iria embora, com ou sem a ajuda dele. Tatiana não tinhamedo de Krasenko. Sabia que ele gostava dela.– Serguei Andrevich, você não pode reter-me aqui. Que impressãodaria se você impedisse Voluntários dispostos a ajudar sua terra natal,ajudando o Exército Vermelho?Zina, ao lado de Tatiana, só assentia com a cabeça.Krasenko suspirou pesado, fez os passes e permissões para deixarKirov e carimbou os seus passaportes domésticos. Quando elas já estavamde saída, ele se levantou e desejou-lhes boa sorte. Tatiana queria dizer aele que ia à procura do irmão, mas ela não queria que ele a demovessedisso, e por isso não disse nada além de obrigada.As meninas foram para um salão escuro do tamanho de um ginásio,onde passaram por um exame físico e foram equipadas com picaretas epás, muito pesadas para Tatiana, e foram enviadas de ônibus à estaçãode Varsóvia, onde pegariam um caminhão militar especial de transportedestinado a Luga.Tatiana se perguntava se eram caminhões blindados como aquelesque transportavam pinturas do Hermitage ou como aqueles queAlexander dizia haver dirigido algumas vezes para o sul de Leningrado.Não eram. Eram somente caminhões comuns cobertos com lona cáquido tipo que Tatiana via sempre ao redor de Leningrado.Tatiana e Zina subiram a bordo. Outras quarenta pessoas ali seamontoaram. Tatiana observou os soldados colocando caixas nocaminhão. 

Teriam que sentar nessas caixas.– O que tem aí dentro? – ela perguntou a um dos soldados.– Granadas – ele respondeu, sorrindo.Tatiana ficou em pé.Os caminhões deixaram a estação Varsóvia num comboio de sete epegaram a estrada com destino ao sul, para Luga.Todos desceram em Gatchina e pegaram um trem militar para o restodo caminho.– Zina – Tatiana disse à sua amiga. – É bom que vamos de trem.Assim podemos descer em Tolmachevo, tudo bem?– Você ficou louca? – disse Zina. – Vamos todos para Luga.– Eu sei. Você e eu descemos e então voltamos em outro trem evamos para Luga.– Não.– Zina, sim. Por favor. Eu tenho que descer em Tolmachevo, tenhoque encontrar o meu irmão.Incrédula, Zina olhou fundo a Tatiana.– Tania! Quando você me contou que Minsky havia caído, por acasoeu lhe disse: venha comigo porque tenho que encontrar a minha irmã? –ela disse, seus pequenos e obscuros olhos piscando, a boca tensa.– Não, Zina, mas eu não acho que Tolmachevo já tenha caído nasmãos dos alemães. Ainda tenho esperança.– Eu não vou descer – Zina disse. – Vou para Luga como todos osdemais, e vou ajudar nossos soldados, como todo mundo. Não quero serfuzilada pela NKVD como uma desertora.– Zina! – Tatiana exclamou. – Como você pode ser uma desertora?Você é uma voluntária. Por favor, venha comigo.– Eu não vou descer e ponto final – Zina disse, afastando-se deTatiana.– Muito bem – disse Tatiana –, mas eu vou descer.   

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