Capítulo 37

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Era novembro, mês de manhãs escuras. Elas haviam coberto as janelas com cobertores para conter o frio, mas ao fazerem isso também ficaram com pouca luz. Que luz, pensou Tatiana enquanto, devagar, ia da cama para a cozinha com a escova de dentes e o peróxido, certa manhã na terceira semana de novembro. Ela costumava ter o peróxido e o bicarbonato de sódio, mas deixara o último no peitoril da cozinha uma noite, e alguém comeu tudo. Tatiana abriu a torneira, e abriu. E abriu. Não havia água. Suspirando, ela voltou para o quarto com a escova e o peróxido e enfiou-se de novo na cama. Dasha e Marina gemeram um pouco. – Não tem água – disse Tatiana. Às nove da manhã, quando havia luz, Tatiana e Dasha foram à repartição local do conselho. Uma mulher emaciada, com lesões no rosto, informou-lhes que dias antes a energia elétrica fora cortada pela companhia de eletricidade porque Leningrado ficara sem combustível. – O que isso tem a ver com a nossa água? – perguntou Dasha. – Como se bombeia água? – perguntou a mulher. Dasha, piscando lentamente, disse: – Eu desisto. O que é isso aqui? Um teste? Tatiana puxou a irmã pelo braço. – Espere, Dasha. – Ela se virou para a mulher. – A energia será restaurada, mas os canos ainda estarão congelados. – Ela falava num tom acusatório. – Não teremos água até o degelo da primavera. – Não se preocupe – disse a mulher, fixando os olhos na papelada. – Nenhuma de nós estará viva na primavera. Tatiana perguntou ao redor do seu edifício e descobriu que o primeiro andar tinha água, mas não havia pressão suficiente para bombeá-la até o terceiro andar. Assim, na manhã seguinte, Tatiana desceu à rua e pegou um balde de neve para levar para casa. Ela derreteu a neve no fogareiro e usou aquela água para descarga do banheiro. Voltou então ao primeiro andar e pegou um balde de água limpa e fria para se lavar, deixando um pouco para Dasha, Mamãe, Marina e Babushka. – Dasha, você pode levantar e vir comigo? – Tatiana disse à irmã certa manhã. Dasha ainda estava na cama, debaixo dos cobertores. – Oh, Tania – Dasha balbuciou. – Faz tanto frio. É muito duro sair da cama neste clima. Tatiana não podia chegar ao hospital antes das dez, às vezes onze, quando terminava de cuidar da água e das rações na loja. Já não havia mais aveia, só um pouco de farinha, um pouco de chá, e algum resto de vodca. E trezentos gramas de pão por dia para Tatiana, Dasha, e Mamãe, e duzentos gramas de pão para Marina e Babushka. – Estou engordando – Dasha disse. – Sim, eu também – disse Marina. – Meus pés estão três vezes o seu tamanho normal. – E os meus também – disse Dasha. – Não consigo encaixá-los nas minhas botas. Tania, hoje não posso ir com você. – Tudo bem, Dasha. Meus pés não estão inchados – disse Tatiana. – Por que estou inchando? – disse Dasha numa voz desesperada. – O que está acontecendo comigo? – Com você? – disse Marina. – Por que sempre é com você? Tudo é sempre com você. – O que significa isso? – E eu? – exclamou Marina. – E Tania? Esse é o problema com você, Dasha. Você nunca vê outras pessoas ao seu redor. – E você vê, sua devoradora de pão? Sua devoradora de aveia. Espere até que eu conte à Tania quanta aveia você nos roubou, sua ladra. – Eu posso ser esfomeada, mas pelo menos não sou cega. – Que diabos significa isso? – Meninas, meninas! – exclamou Tatiana, num tom cansado. – Para que tudo isso? Quem está mais inchada? Quem sofre mais? Ambas ganham. Agora, voltem para a cama e esperem até eu voltar. E as duas, fiquem em silêncio, sobretudo você, Marina.

  – O que vamos fazer? – disse Mamãe uma noite, quando Babushkaestava no outro quarto e as meninas na cama.– A respeito de quê? – perguntou Dasha.– Babushka – ela disse. – Agora que ela não vai mais lá para os ladosdo Neva, fica em casa o dia inteiro.– Sim – disse Marina – e agora que está em casa o dia inteiro, come oque sobra da farinha de Alexander, uma colher cheia a cada vez.– Marina, cale a boca – disse Tatiana. – Não temos mais farinha.Babushka come o enfarelado do fundo da bolsa.– Oh? – Marina mudou de assunto. – Tania, você acha que éverdade? Todos os ratos saíram da cidade?– Não sei, Marina.– Você tem visto gatos ou cachorros?– Não sobrou nenhum – Tatiana disse. – Isso eu sei. – Ela olhara.Mamãe aproximou-se da cama das meninas, agachou-se ao lado,sacudiu a cabeça.– Me escutem, todas vocês – ela disse. A voz de Mamãe não era maisruidosa, nem estridente, nem alta. Mal soava como uma voz, certamentenão aquela que Tatiana reconhecia como sendo a da sua mãe. Ela aindausava um lenço na cabeça para prender o cabelo e tirá-lo do rosto. –Estou falando do frio. Ela está aqui o dia todo. Temos lenha suficientepara acender a bourzhuika para ela o dia inteiro?– Não – disse Dasha, apoiada num cotovelo. – Eu sei que não temos.Precisamos de toda a lenha disponível para aquecer a bourzhuika à noite.E mal dá para isso. Vejam há quanto tempo não aquecemos direitonossos quartos com o fogão grande.Desde que Alexander esteve aqui a última vez, pensou Tatiana. Elesempre pega lenha e acende o fogo e aquece o quarto.Mamãe esfregou as mãos e disse:– Vamos ter que dizer a ela que mantenha a bourzhuika acesa o diainteiro.– Diremos isso a ela, Mamãe – disse Tatiana –, mas logo ficaremossem lenha.– Tania, ela está se congelando no apartamento. Já percebeu comose mexe lentamente?Dasha assentiu.– Ela costumava ir ao refeitório público e lá ficar o dia inteiroesperando por alguma sopa, um pouco de mingau de aveia. Hoje eu vique ela não se levantou do sofá nenhuma vez, nem mesmo para jantarcom a gente. Tania, você acha que podemos interná-la no seu hospital?– Podemos tentar – disse Tatiana –, mas não creio que haja camadisponível. As crianças ocupam todas e os feridos também.– Então amanhã tentamos, está bem? – disse Mamãe. – Pelo menosno hospital ela ficará mais aquecida. Ainda funciona o aquecimento noshospitais?– Eles fecharam três alas do hospital – Tatiana respondeu, arrastandosepara fora da cama. – Eles mantêm só uma aberta, e está cheia.Os cobertores haviam caído e Babushka Maya, deitada no sofá, sótinha por cima o seu próprio casaco. Tania pegou os cobertores e acobriu bem, até o pescoço, enfiando-os ao redor dela. Ajoelhou-se nochão.– Babushka – ela sussurrou –, fale comigo.Babushka gemeu debilmente. Tatiana colocou a mão na cabeça daavó.– Ainda tem forças? – ela perguntou.– Não muito...Tatiana conseguiu sorrir.– Babushka, eu me lembro, sentada ao seu lado, quando vocêpintava; os cheiros da pintura eram muito fortes, você sempre coberta detinta, e eu sentava tão perto de você que também ficava toda cobertade tinta. Lembra disso?– Eu me lembro, meu raio de sol. Você era uma doce criança. – Elasorriu.Tatiana mantinha a mão na cabeça da avó.– Você me ensinou a desenhar uma banana quando eu tinha quatroanos. Nunca tinha visto uma banana e não podia desenhar uma, lembra?– Você desenhou uma bela banana – Babushka disse. – Mesmo nuncatendo visto uma. Oh, Tanechka... – Ela interrompeu.– O que é, Babushka?– Oh, ser jovem de novo...– Eu não sei se você notou – Tatiana sussurrou –, mas os jovenstambém não estão indo muito bem. 

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde as histórias ganham vida. Descobre agora