Capítulo 29

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  Na manhã seguinte, enquanto se vestiam, os Metanovs ouviram no rádio que uma bomba incendiária caíra no teto de um edifício na Rua Sadovaya e a patrulha do telhado não conseguira desativá-la a tempo. Abomba explodiu, matando todo mundo lá, nove pessoas, todas com menos de vinte anos.Meu irmão tinha menos de vinte, Tatiana pensou, calçando os sapatos. Sua tíbia latejava.– Viu só? O que eu lhe disse? – falou Mamãe. – É perigoso ficar no telhado.– Estamos no meio de uma cidade sitiada, Mamãe – Tatiana disse. – É perigoso ficar em qualquer lugar.O bombardeio começou precisamente às oito da manhã. Tatiana ainda não havia nem saído para pegar suas rações. A família inteira se amontoou no abrigo antiaéreo, na parte debaixo do edifício. Indócil,Tatiana mordeu as unhas bem rápido e batucou e batucou uma canção nos joelhos, mas nada disso ajudou. Sentaram-se ali durante uma hora.Mais tarde, Papai deu a Tatiana seu carnê de racionamento e pediu-lhe que pegasse suas provisões.– Tanechka – Mamãe disse –, pode pegar as minhas também? Preciso costurar tudo isto antes de ir para o trabalho. Estou fazendo uniformes extras para o Exército.

– Ela sorriu. – Um uniforme para o nossoAlexander, dez rublos para mim.Tatiana pediu a Marina que a acompanhasse ao armazém. Marinadeclinou, dizendo que ia ajudar Babushka a se vestir. Dasha estava nacozinha lavando roupas na pia de ferro fundido.Tatiana foi sozinha. Ela encontrou um grande armazém no CanalFontanka, perto do Teatro de Drama e Comédia. O teatro iria apresentara obra Noite de Reis, de Shakespeare, às sete daquela noite. A fila doarmazém se alongava até as margens do rio.Ela se aqueceu logo da peça quando, ao chegar no balcão, constatouque, depois do incêndio nos depósitos Badayev, no dia anterior, a raçãofora ainda mais reduzida.Papai recebeu, por conta do seu carnê de trabalhador, meio quilo depão, mas os demais receberam, cada um, só 350 gramas, Marina eBabushka só 250 gramas. Juntando tudo, eles tinham ao redor de doisquilos de pão para o dia. Além do pão, Tatiana conseguiu compraralgumas cenouras, feijão de soja e três maçãs. Comprou também cemgramas de manteiga e meio litro de leite.Depois de correr de volta para casa, Tatiana contou à família sobre asrações reduzidas. Eles não estavam preocupados.– Dois quilos de pão? – Mamãe disse, deixando a costura de lado. – Émais do que suficiente, é bastante. Não precisamos nos entupir comoporcos em tempos de guerra. Podemos apertar um pouco nossos cintos.Além do mais, temos toda aquela comida extra, se for preciso. Estaremosbem.Tatiana dividiu o pão em duas pilhas – uma para o café da manhã,outra para o jantar – e então dividiu cada uma delas em seis porções.Coube a Papai mais pão. E ela ficou com menos.No hospital, Tatiana perdeu a pretensão de treinar enfermagem comVera. Ficou limitada a limpar os banheiros, dar banhos nos pacientes edepois lavar as suas roupas de cama sujas. Ela servia o almoço eaproveitava para comer. Às vezes, soldados apareciam para comer. Nahora de servi-los, sempre lhes perguntava se estavam estacionados nasBarracas Pavlov. 

O bombardeio intermitente continuou durante o dia.Naquela noite, Tatiana teve tempo de fazer o jantar e limpar acozinha antes do toque da sirene, às nove, alertando sobre ataqueaéreo. De volta ao abrigo antiaéreo, ela se sentou, sentou e sentou. Sópassaram dois dias, pensou. Quanto tempo vai durar esta situação? Napróxima vez em que eu vir Alexander, vou lhe pedir que me conte averdade sobre quanto tempo isto tudo vai continuar.O abrigo era comprido e estreito, pintado de cinza, duas lâmpadas dequerosene para mais ou menos sessenta pessoas, que se sentavam embancos, ficavam em pé ou apoiavam-se nas paredes.– Papai – Tatiana perguntou –, quanto tempo o senhor acha?– Isto acaba em poucas horas – ele disse, abatido.Tatiana sentiu o cheiro, forte, de vodca em seu hálito.– Papai – Tatiana disse numa voz cansada. – Eu quis dizer... ocombate, a guerra. Quanto tempo mais?– E como posso saber? – ele disse, tentando se levantar. – Até queestejamos todos mortos?– Mamãe, o que há com Papai? – Tatiana perguntou.– Oh, Tanechka, você não pode ser tão cega. Pasha é o problemacom Papai.– Não sou cega – sussurrou Tatiana afastando-se. – Mas a famíliaprecisa dele.Tatiana, ao chegar mais perto de Dasha e Marina, perguntou:– Dash, a Marinka aqui me contou que o Misha lá em Luga curtia umapaixonite por mim. Eu disse que ela estava louca. O que você acha?– Ela é louca.– Obrigada.Marina olhou para Tatiana e Dasha.– Vocês duas são as loucas – ela disse. – E você, Dasha, algum dia vaicomer suas próprias palavras.– Aí está, Tania – disse Dasha, sem mesmo olhar para a irmã. – Talvezseja do Misha que você precise, não do Dimitri. – Ela suspirou.No dia seguinte a mesma coisa. Desta vez, Tatiana levou consigo umexemplar do livro Memórias do Subsolo, de Dostoiévski.No dia seguinte Tatiana disse a si mesma: eu não posso mais fazeristo. Não posso sentar e batucar minha vida nos joelhos.Assim, enquanto a sua família descia para o abrigo, Tatiana ficou umpouco atrás e então correu de volta ao apartamento e subiu as escadastraseiras para o telhado, onde Anton, Mariska e Kirill e mais algumaspessoas que ela não conhecia vigiavam o céu. Tatiana pensou que comum pouco de sorte sua família talvez nem notasse sua ausência.Eram de dar medo a explosão e o ruído sibilante do bombardeioouvidos do telhado. Tatiana ficou ali duas horas. Nenhuma bomba caiuperto deles, todos ficaram decepcionados.Tatiana tivera razão. Ninguém percebeu que ela não fora para oabrigo.– Onde você se sentou, Tanechka? – perguntou sua mãe. – Dooutro lado perto da lâmpada?– Sim, Mamãe.Nenhum sinal de Alexander ou Dimitri. As meninas estavam fora de si.Mal podiam falar uma com a outra, e muito menos com alguém mais. SóBabushka Maya, inquebrantável, ficava tranquila e continuava pintando.– Babushka, de onde a senhora tira sua paz de espírito? – perguntouTatiana uma noite, escovando os longos cabelos da avó, já grisalhos.– Estou muito velha para me importar com qualquer coisa, meu raiode sol – respondeu Babushka. – Não sou jovem como você. – Ela sorriu.– Não quero viver muito mais. – Olhou por cima do ombro e tocou orosto de Tatiana.– Babushka, não diga isso. – Ela deu a volta e abraçou a avó. – E se oFedor volta?Babushka afagou a cabeça de Tatiana e falou:– Eu não disse que não quero viver. Eu disse que não muito mais.Tatiana estava um pouco preocupada com Marina. Ela ficava fora doapartamento desde cedo até a noite, ia à universidade de Leningrado edepois sem falta, visitava a mãe no hospital.À noite Mamãe costurava. À noite Papai bebia, gritava e dormia. Ànoite Dasha e Tatiana ouviam as notícias do rádio. À noite haviabombardeio, e Tatiana dava uma fugidinha para o telhado.E durante o dia ela ouvia os sons de guerra. Nunca havia silêncio emLeningrado. O fogo de artilharia vinha em dois sons, distante e próximo,parava um pouco no almoço, e depois, na hora de dormir, à noite.Tatiana trabalhava, comprava pão, sarava a perna e agia como se suavida não estivesse em ponto morto, como o bonde perto do CanalObvodnoy.Babushka Maya tinha um quarto só para ela. Mamãe dormia sozinha nosofá, Papai dormia sozinho no catre de Pasha. Tatiana, Marina e Dashadormiam na mesma cama.Tatiana estava quase agradecida pelo amortecedor entre ela e Dasha,amortecedor que lhe permitia enfrentar a crise dos bombardeiosdesviando os olhos da crise com a irmã, que tinha o direito durante aguerra de amar Alexander.Apesar do amortecedor, Dasha certa noite pulou sobre Marina ecolocou os seus braços ao redor de Tatiana.– Tania, querida, está dormindo?– Não, qual é o problema?– Você pensa neles morrendo? 

– Dasha perguntou no escuro.– Garotas, eu tenho escola amanhã – disse Marina. – Durmam.– Claro.Tatiana ouviu Dasha choramingando baixinho.– Você acha que eles estão mortos agora? – perguntou Dasha,segurando Tatiana.Com uma respiração dolorida, Tatiana suspirou por Alexander.– Não – ela disse. – Não acho. – Ela não queria conversar com Dashasobre Alexander. Não agora. Nunca. – Dasha, preocupe-se com você,olhe as condições em que vivemos. Você vê isso? No hospital meperguntaram se eu me importava em deixar a cozinha e subir para ajudá-los com as vítimas de bombas. Concordei, mas depois vi o que sobravadelas. – Tatiana fez uma pausa. – Você viu que hoje, lá em Ligovsky,desmoronou um edifício inteiro?– Não vi.– Uma menina, dezessete...– Como você. – Dasha a apertou.– Sim, estava debaixo dos escombros. O pai tentava ajudar osbombeiros a resgatá-la. Passaram o dia cavando. Às seis da tarde, quandosaí do hospital, eles haviam terminado o serviço. E ela já estava morta.Um buraco na testa.Dasha não disse nada.– Tania – Marina disse –, você acaba de dizer que saiu do hospital àsseis? Mas havia bombardeio a essa hora. Você não foi para o abrigo?– Marinka – disse Dasha –, não fale desse assunto com sua prima. –Ela sussurrou no cabelo de Tatiana. – Se não for para o abrigo, voudedurar você.Naquela noite as sirenes os acordaram às três da manhã. Os alemãesobviamente queriam divertir-se um pouco. Tatiana virou-se para a paredee teria continuado a dormir se a família não a tivesse arrastado para forada cama. E eles se amontoaram na plataforma atrás das escadas, eTatiana pensou: pior que isto não pode ficar.  

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