O Campo de Marte

Começar do início
                                    

- Ai! - disse Tatiana em alto e bom som. - Mamãe, acho que elaquebrou minhas costelas.- E eu vou quebrar já mais alguma coisa. Vocês duas já estãograndinhas para essas brincadeiras.Dasha mostrou a língua à Tatiana.- Bem crescidinhas - Tatiana disse. - Nossa Mamochka não sabe quevocê tem apenas dois anos.Dasha continuou com a língua de fora. Tatiana esticou-se e pegou acoisa escorregadia entre seus dedos. Dasha berrou. Tatiana soltou a mão.- O que eu disse! - Mamãe urrou.Dasha se abaixou e murmurou à Tatiana:- Espera até conhecê-lo. Você nunca viu alguém tão bonito.- Mais bonito ainda que aquele Sergei com quem você me torturou!Você não me disse que ele era tão bonito?- Para com isso - Dasha sibilou, batendo na perna de Tatiana.- Claro - Tatiana sorriu. - E isso não foi na semana passada?- Você nunca entenderá porque ainda é uma criança incorrigível. -Outra batida na perna.Mamãe gritou. As meninas pararam.O pai de Tatiana, Georgi Vasilievich Metanov, entrou no quarto. Baixo,quarentão, ele exibia uma cabeça com cabelos negros e desalinhados,que já começavam a ficar grisalhos. Dasha herdou de Papai seu cabeloencaracolado. Passou ao lado da cama, olhou vagamente para Tatiana,pernas ainda debaixo dos lençóis, e disse:- Tania, é meio-dia. Levante-se. Ou vai haver problema. Preciso devocê vestida em dois minutos.- Fácil - Tatiana respondeu, pulando na cama e mostrando à famíliaque ainda vestia a blusa e a saia do dia anterior. Dasha e Mamãebalançaram a cabeça. Mamãe meio que sorriu.Papai desviou o olhar na direção da janela.

- O que vamos fazer com ela, Irina?Nada, Tatiana pensou, nada enquanto Papai tiver os olhos para ooutro lado.- Eu preciso me casar - Dasha disse, ainda sentada na cama. - Entãofinalmente terei um quarto só meu para me vestir.- Você está brincando - disse Tatiana, pulando na cama. - Vai ficardireitinho aqui com o seu marido. Eu, você, ele, todos dormindo numaúnica cama, e Pasha aos nossos pés. Romântico, não é?- Não se case, Dashenka - sua mãe disse meio distraída. - Tania temrazão desta vez. Não temos lugar para ele.Seu pai nada disse e ligou o rádio.O longo e estreito quarto tinha uma cama ampla, em que dormiamTatiana e Dasha, um sofá, no qual dormiam Mamãe e Papai, e um catrebaixo de metal para o irmão gêmeo de Tatiana, Pasha. Seu catre ficavaao pé da cama das meninas, e por isso Pasha dizia-se seu pequeno cão deguarda.Os avós de Tatiana, Babushka e Deda, moravam no quarto adjacente,ligado ao deles por um curto corredor. Dasha às vezes dormia nopequeno sofá no corredor, quando voltava tarde e não queria perturbarseus pais e ter problemas no dia seguinte. O sofá tinha só um metro emeio de comprimento, mais adequado para Tatiana dormir, já que elamedia justo isso. Tatiana, contudo, não precisava dormir no corredorporque raramente voltava tarde, mas com Dasha era outra história.- Onde está o Pasha? - Tatiana perguntou.- Terminando o café da manhã - Mamãe respondeu.Ela não podia parar de se mexer. Enquanto Papai sentava no velhosofá, imóvel como um edifício, Mamãe se alvoroçava ao redor dele,recolhendo maços de cigarros vazios, arrumando livros na estante,limpando a pequena mesa com a mão. Tatiana continuava em pé nacama. Dasha continuava sentada.Tinham sorte os Metanovs, pois dispunham de dois quartos e de uma parte do corredor comunitário.

Haviam construído, seis anos antes, umaporta para separar o final do corredor. Era quase como ter umapartamento próprio. Os Iglenkos, do fundo do corredor, tinham quedormir, os seis, num quarto grande - fora do corredor. Isso é que era másorte.A luz do sol infiltrava-se através das ondulantes cortinas brancas.Tatiana sabia que haveria um único instante, um fugaz bruxuleio detempo que a banhava com as possibilidades do dia. Num momento tudoteria ido embora. E num momento era tudo. Ainda assim... aquele solirrompendo no quarto, o ronco distante dos ônibus através da janelaaberta, o leve vento.Esse era o período do domingo que Tatiana mais curtia: o começo.Pasha entrou com Deda e Babushka. Embora fosse gêmeo deTatiana, não parecia com ela. Menino de compleição robusta, cabelosescuros, uma versão menor do pai. Ele registrou a presença de Tatianacom um leve sinal de cabeça e a frase:"cabelo bonito".Tatiana mostrou-lhe a língua. Ela ainda não escovara nem prendera ocabelo.Pasha sentou-se no seu catre baixo, e Babushka aninhou-se juntodele. Por ser a mais alta dos Metanovs, a família acatava todas as suasdecisões, exceto em assuntos de moralidade, nos quais Deda tinha aúltima palavra. Babushka era imponente, franca e direta, de cabelosgrisalhos. Deda era modesto, melancólico e bondoso. Ele se sentou juntoa Papai no sofá e murmurou:- É coisa grande, filho.Papai assentiu ansioso.Mamãe continuava limpando ansiosamente.Tatiana observou Babushka acariciar Pasha nas costas.- Pasha - Tatiana sussurrou, se arrastando à beira da cama e puxandoo irmão -, quer ir mais tarde ao Parque Tauride? Eu ganho a guerra devocê.

O Cavaleiro de Bronze Livro IOnde as histórias ganham vida. Descobre agora