Capítulo 3

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Por passar grande parte do meu tempo sozinha, eu quase não falava, então sempre que tentava dizer algo, soava rouco e arrastado. Constantemente eu me assustava com o som da minha própria voz.

Já meu corpo, não era esquelético como se espera de alguém que não se alimente, apenas mal cuidado e constantemente ferido.

Com apenas onze anos, eu já tinha incontáveis cicatrizes por todo o corpo. Tanto de feridas causadas por ela, quanto por mim. Eu podia senti-las sempre que passava as mãos por minha pele. Eram leves ondulações que me impediam de esquecer todo o pesadelo em que vivia.

Em uma das noites, acompanhada pelo cachorrinho, que já não era tão pequeno e que era carinhosamente chamado de Blayde, Kate se sentou na escada, e passou alguns minutos me encarando.

Paralisei ao vê-la. Foi uma das poucas vezes em que a luz do andar de cima adentrou o lugar, e eu pude ver seu rosto com clareza, e aparentemente, ela também enxergava o meu.

Minha mãe me encarava séria, parecendo mal, mas em seus olhos, eu notava o medo. O inexplicável medo que ela sempre demonstrou sentir de mim.

Àquela altura, eu ainda não conhecia meu passado, e sequer sonhava com meu futuro.

— Por que você não morre? — Sua voz ecoou inesperadamente. Suave e, simultaneamente, aterrorizada. — Por que diabos você simplesmente não morre?

Não consegui pensar em uma resposta, e creio que nem saberia pronunciá-la.

— Mesmo após anos, eu não consigo me livrar de você! Maldito encosto! — Ela se exaltou, e logo estava às lágrimas.

Blayde se aproximou dela, tentando animá-la.

— Venha pequeno. — Ela o colocou em seus braços e subiu as escadas. — Apodreça de uma vez seu demônio! — Dito isso, a pequena porta foi trancada outra vez.

Permaneci paralisada da mesma maneira. A mente congelada, e o coração disparado, até que uma luz surgiu às minhas costas, e me virando, vi haver uma vela que ardia com tanta intensidade, que todos os cantos tornaram-se visíveis.

Pela primeira vez consegui ver, de fato, o lugar em que eu vivia (se é que podemos chamar algo assim de vida).

Era um lugar amplo e sem divisões. O chão era coberto por uma camada grossa de sujeira, e diversas manchas de meu sangue. As paredes estavam gastas e morfadas, e eram enfeitadas com muitas prateleiras igualmente gastas.

A vela em questão, estava no centro do porão, sobre um caixa de papelão fechada.

Aquilo me atraiu, e quando me dei conta, já estava abrindo-a.

Em seu interior, encontrei um pequeno pedaço de papel com palavras escritas de vermelho. De início me pareciam apenas símbolos, e a leitura era impossível, mas pouco a pouco, pude entender tudo o que ela dizia.

"Olá, garota. Não precisa temer, estou aqui apenas para lhe salvar da vida que tanto odeia."

Ouvi um barulho nas escadas e uma pancada na portinha. Me virei abruptamente para ver o que era, mas tudo que encontrei foram pegadas em meio a sujeira daquele lugar. Pegadas pesadas e com um formato grosseiro demais para terem sido feitas por uma pessoa.

Desde esse dia, comecei a receber várias cartas semelhantes àquela. Sempre com cumprimentos gentis, e promessas de que um dia eu estaria livre da vida medíocre que levava.


Continua....

A Filha do DiaboWhere stories live. Discover now