Capítulo 67

3.3K 295 0
                                    

Uma nuvem carregada enfeitava a grande janela do meu quarto. Uma tempestade furiosa parecia se formar lá fora, nada melhor que um dia de folga chuvoso. Levantei num desânimo rotineiro, prendi meus longos cabelos num coque embolado, vesti meu casaco felpudo e fui em direção a grande escadaria. Um tapete vermelho e confortável me guiava até a cozinha, grande, iluminada e prateada. Comecei a preparar o café da minha avó, esses dias frios só pioravam seu estado. Setenta e um anos não eram pra qualquer um, mas a minha Dona Agnes sabia lidar com isso com muita alegria.

– Bom dia minha rainha!

– Já preparou tudo minha filha? Madrugou por quê? – seu sorriso era tão sincero e cativante, o brilho do seu olhar, a palidez da sua pele. Parecia uma vovó de conto de fadas, na verdade era minha fada madrinha.

– Sim vovó, sabe que gosto passar esse tempo com você, é um dos únicos momentos que temos juntas.

– Mentira! Você quase nunca sai, até esnobou o pobre Davi... tão bom aquele menino.

De fato Davi era um anjo, sempre me ajudava, mas era apenas isso. Demos um beijo na noite do meu surto, mas na manhã seguinte o chamei para uma conversa séria. Expliquei que por maior que fosse meu carinho por ele, nunca se transformaria em amor. Ficou um pouco confuso, obviamente por não se lembrar de nada. Acho que ele me julga como louca e por isso não leva fé quando falo nisso, mas deveria, estou mais lúcida que nunca.

Na noite que me lembrei de tudo me senti um trapo, meu corpo parecia vazio e sem vida. Lembro que dei boa noite a Davi e segui caminhando pra casa, um atalho pelas árvores me pareceu atrativo. Caminhei e chorei, compulsiva e desoladamente. Sebastian, até então o meu grande amor, havia partido para evitar uma tragédia, a morte do nosso filho e a minha própria morte. Naquela noite só me lembro de ter caminhado até a Cachoeira da Pedra, minha predileta, cenário dos melhores acontecimentos da minha vida, lá chorei e me encolhi na minha pedra favorita. Hoje me pergunto se adiantou tantas lágrimas, acho que só serviram para me desidratar.

– Filha, receberei visitas hoje, umas amigas. O que acha de ficar conosco?

– Seria ótimo vovó, mas tenho que pagar umas contas. Quem sabe chego a tempo do chá.

– Vou me contentar com isso. Tenha cuidado Leni, o dia parece feio, zangando.

Sorri da sua descrição, dei-lhe um beijo na testa e fui me arrumar. Assim que abri a grande porta branca tive que concordar com a classificação da minha avó, o dia realmente parecia bravo. Nuvens escuras cobriam o céu de Belo Vale, uma fina garoa começou a cair e tive que abrir o guarda-chuva. Caminhei sem pressa admirando o aspecto nublado do dia, sentia certo incômodo no peito, não era uma dor, mas um tipo de pressão. Como se algo fosse acontecer.

Depois de alguns minutos finalmente cheguei ao centro. Poucas pessoas na rua, a chuva afastava tanto moradores quanto turistas. Corri para o banco e percebi um grande carro na porta, deveria ser de alguém importante. Paguei minhas contas e já estava saindo quando ouvi um assovio, fingi não ouvir e continuei caminhando em direção a porta.

– Ei garota, estou te chamando! – me virei tão violentamente que case caí. Que tom de voz era aquele, com quem esse idiota pensava estar falando? Vi seu rosto magro, cabelos castanhos e cacheados, olhos negros, brilhantes. Seu corpo era magro e alto, elegante e verdadeiramente irritante.

– Como é? – tentei me controlar diante daquela situação absurda enquanto todos no banco já nos encaravam.

– Só queria saber o caminho para o antiquário da cidade. Sabe me dizer? – ele precisava falar comigo daquele jeito? Me senti uma retardada, ele falava pausadamente como se eu não fosse capaz de entender. Idiota.

– Qualquer um aqui pode te dizer, a cidade é um ovo – respondi irritada.

– Tudo bem, obrigado pela falta de educação – disse alargando os passos e saindo do banco, mas ainda tive tempo de gritar.

– Igualmente, estúpido!

Melhor ParteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora