6. Matias

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Meu pai critica a reunião com o último fornecedor do dia

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Meu pai critica a reunião com o último fornecedor do dia.

O puxa-saco do Eduardo concorda com cada palavra.

Sei que esperam uma reação minha, mas não darei a eles a satisfação. Afinal, apesar das críticas do meu pai, saímos da reunião com o acordo que eu previra.

Eu não viajo sem antes pesquisar o mercado e conhecer detalhadamente cada fornecedor. Sempre que fecho um negócio já sei exatamente quais as condições que quero para assinar. Nunca cedo para o risco. Cada novo parceiro passa por uma pesquisa minuciosa. Não gosto de má qualidade, não tolero atrasos em entregas, não suporto desculpas esfarrapadas.

Deixo tudo bem claro para evitar outra coisa que detesto: surpresas.

Eduardo reforça o coro do meu pai sobre os supostos riscos de fechar o negócio com esse novo fornecedor, mas seus alertas não passam de bobagens. Eu poderia rebater cada um de seus argumentos, provando a eles como não estudaram a história da empresa a fundo como eu, como não conhecem as vantagens do acordo e o lucro estimado do investimento.

Sinto que eles aguardam a minha fala: meu pai está ansioso para rebater minhas convicções e adentrar em um longo discurso sobre como estou errado. Ele adora se ouvir falar... Já Eduardo e os outros cinco executivos ao redor da mesa de jantar estão ansiosos apenas para balançar a cabeça e concordar com o meu pai.

Acreditam que, assim, estão me enfraquecendo. Mal sabem eles que tudo isso não passa de um jogo antigo e, nessa competição, só há dois jogadores: eu e meu pai.

Por isso, minha tão aguardada fala não é direcionada a nenhum deles: - Un steak frites, s'il vous plaît.

Um bom filé com batatas fritas vai resolver minha indignação.

O jantar segue com menções escassas a qualquer assunto que não seja relacionado a trabalho. Por mais saturada que a conversa esteja, ninguém parece notar, com exceção do mais jovem dos executivos, um advogado que cresceu rapidamente na área jurídica da empresa. Pedro é o único que parece tão entediado quanto eu.

Arrisco uma conversa sobre a cidade, afinal não é sempre que temos uma manhã livre em Paris. No dia seguinte, a primeira reunião é apenas na hora do almoço com um fornecedor têxtil que selecionei para a linha de luxo de cama e banho. Depois, iremos para a Provence, onde visitaremos vinícolas para suprir a demanda das nossas adegas e do serviço de assinatura de vinhos.

Uma das maiores críticas do meu pai à minha gestão é o modo como eu expandi os negócios. A Bernadi CMB começou com um pequeno mercado de esquina, aberto pelo meu avô, um dos fundadores de Aroeiras nos anos 40. Quando meu pai assumiu a empresa, meu avô já era dono de grande parte dos mercados da região. Meu pai nos colocou no ramo de supermercados com o Di Esquina, expandindo para todo o país. A proposta era pulverizar a nossa presença, honrando o slogan "bem ali na esquina".

Com uma seleção cuidadosa de produtos, os Di Esquina se multiplicaram. Porém, quando eu assumi, a empresa enfrentava sua primeira crise. Não tínhamos um bom e-commerce para atender às novas demandas por pedidos online e estávamos sendo massacrados pela concorrência. A renovação na liderança da empresa foi praticamente uma exigência dos acionistas.

Eles não se arrependeram.

Meu pai me colocou no cargo com a esperança de continuar no comando, me guiando como sua marionete, mas nós possuíamos ideias bem diferentes quanto ao futuro da empresa.

Enquanto ele insistia em abrir ainda mais lojas físicas e intensificar nossa presença pelo país, eu parti para o caminho contrário.

Tive a difícil missão de fechar filiais.

Muitas.

Isso me rendeu a fama de um homem sem coração, mas poucas pessoas entendem que, caso isso não tivesse sido feito, a empresa afundaria ainda mais na crise e, em poucos anos, mais pessoas perderiam os empregos.

Investi pesado no online e, no final do primeiro ano da minha gestão, coloquei de pé o melhor aplicativo de compras do país.

O sucesso foi instantâneo e um pouco maior do que eu tinha previsto. O app foi tão usado que faliu algumas de nossas outras filiais, o que me rendeu muitas críticas. Mas o efeito na concorrência... foi devastador.

Durante a pandemia, as compras pelo site e pelo aplicativo ganharam força, aumentando ainda mais o nosso lucro.

A nossa presença online foi ficando tão forte que não fazia mais sentido vender apenas alimentos e itens de conveniência.

Hoje, a Bernardi CMB tem um portfólio tão amplo que é até difícil definir a nossa especialidade.

Meu pai odeia essa pluralidade. Chama de falta de foco, de "investimentos aleatórios".

Já eu amo.

Gosto do desafio de explorar um novo ramo, de desvendar oportunidades. Enquanto meu pai se frustra na insegurança, eu a procuro.

Sempre que me sinto confortável demais, confiante demais, sei que está na hora de buscar algo novo.

Para o meu pai, nossos negócios devem ser como esse prato que o garçom acaba de colocar na minha frente: fácil, tradicional, certeiro.

Como meu steak frites com prazer e admito para mim mesmo que, nesse caso, o tradicional tem seu valor.

Quando saímos do restaurante, Eduardo chama um táxi e eu anuncio que vou ficar para fumar um cigarro. Meu pai estala a língua como se soubesse que essa é uma desculpa barata, mas não diz mais nada. Usando o mesmo argumento, Pedro me faz companhia. Nos apoiamos na parede do restaurante, iluminados pelo letreiro vermelho.

Ele me conta suas impressões da cidade, enquanto relembra uma viagem que fez com a família há alguns anos.

Os cigarros ainda estão na metade quando ele convida: - Fui com as minhas irmãs a uma boate no final da Champs-Élysées...Logo depois do Arco. Quer ver se ainda existe?

Música, bebida e pessoas querendo extravasar.

Não é muito diferente do convite que meu primo Luca fez há poucos dias e eu fiz questão de negar até ser praticamente arrastado por ele. Mas a diferença é que, aqui, ninguém me conhece.

Não sou Matias Bernardi, CEO da Bernardi CMB.

Sou apenas um turista brasileiro qualquer.

Apago o cigarro e sigo Pedro na subida da rua mais famosa da cidade. Quando chegamos ao Arco do Triunfo, já dá pra ver a fila em frente à boate e ouvir os sons abafados da música que vem do subterrâneo.

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