Pieces to the board

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As pessoas às vezes falam sobre a crueldade "bestial" do homem, mas isso é terrivelmente injusto e ofensivo para os animais, nenhum animal jamais poderia ser tão cruel quanto um homem, tão artisticamente, tão artisticamente, cruel.
Fiódor Dostoiévski



O coma induzido de mel de estrela não funcionava tão bem em seres com sangue de fada. Para humanos, a magia poderia adornar seus efeitos com uma força mais desequilibrada, tornando o sono mágico um sono de verdade.

Mas Mel de estrela vinha da flor de estrela cadente. Noturna, bioluminescente, rara — extremamente rara. Formada de estrelas cadentes rasantes que, ao despencarem do céu, se enterravam na terra fofa e lá, dormiam, para acordar como flores e morrerem à luz do sol. Era uma flor de fada, de magia arcana antiga, não de magia natural, e por isso seu efeito em fadas era mais conciso, pesado nos seres mágicos.

Peter não tinha dormido essa noite. Tinha piscado para o escuro e acordado para o corte do sol, num segundo de transição extremamente curto e nauseante. Nem mesmo seu corpo parecia ter atravessado o espaço de tempo, descansado as horas apagadas, só levado com sua mente naquela fração de segundo milimétrica. Era uma sensação dissociativa, de longe.

Com isso, fazia sentido que, depois de trazer Wendy de volta e chegar à torre oito, as notas calmantes de Nenzi o fizessem se sentir sonolento. De início, para a extrema confusão de Nenzi, o príncipe tinha tentado se manter de pé, olhando pelas lentes quebradas e embaçadas do velho telescópio ao som de Vivaldi, Waltz, mas tinha desistido ao som de Einaudi, enquanto o pianista soturno parecia treinar suas habilidades de memória.

Ele não deixou, claro, de lutar e reclamar quando Peter se esgueirou pelo espaço da banqueta e deitou a cabeça em uma de suas coxas, fechando os olhos como uma criança, enquanto ele tocava. O toque de calor familiar fez do rosto de Nenzi uma festa de rosa debaixo dos olhos, mas não atrapalhou seu treino, no fim.

Ainda era como se nada estivesse certo, mas tivesse começado a ficar, de uma forma incompreensível. Homens podiam ser terríveis com resoluções afetivas realmente claras e ainda piores quando envolviam outros homens, então com um homem e um ser meio-fada, a situação era incalculável. Peter e Nenzi não tinham realmente chegado a lugar nenhum, ainda que parecessem naturalmente inclinados a estarem perto um do outro, como faziam antes. Assim como o mel de estrela, era dissociativo, quase, a ideia de acordar para algo diferente mesmo que nada estivesse realmente diferente.

O silêncio — ou sua forma sem palavras envolta em música — tinha se tornado calmo entre eles. Pelo menos, até o momento em que Peter abriu os olhos.

Nenzi viu. Não havia nenhuma luz corpórea de magia neles, só o arregalar do sentimento de alerta, o foco de um estímulo externo. A música parou.

"Ele está aqui", Peter disse, com a voz rouca justa de quem estivera descansando.

Algo no ar acionou as linhas de energia pelas veias de Nenzi, ainda que nenhuma delas tenha subido à superfície da pele para ser vista. Peter se levantou com um impulso equilibrado, ágil, de pé num instante. Nenzi mal tivera tempo de afastar as mãos das teclas.

"Quem está aqui?", perguntou.

Peter estava ajeitando a camisa amassada e os cabelos com uma expressão sóbria. "Eu não devia ter deixado você me distrair", resmungou. "Agora tenho pouco tempo e muita coisa para explicar. Sabe onde deixei meu casaco? Hum."

Nenzi também levantou, captando o ar de pressa sem entender. "Quem está vindo?"

Peter achou o casaco esquecido perto do tapete e bateu nas dobras antes de vestir no corpo. "Michael Darling. E uma lobo fêmea, da guarda pessoal de Diana, jurada em missão de proteger o menino, eu imagino. Vão nos encontrar na torre cinco. Arrume esse cabelo, por favor."

The Peter PanWhere stories live. Discover now