Capítulo 46: Ilha dos Pesadelos.

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Atlas

A chuva do lado de fora havia causado algumas goteiras irritantes da torre. O barulho dos pingos caindo repetidas vezes no chão fazia meus músculos contraírem. A noite lá fora parecia mais assustadora do que em qualquer outro dia, com os clarões dos travões refletindo nas paredes circulares da torre.

Eu estava sentado no centro dela. As pernas cruzadas embaixo do corpo e minhas mãos soltas sobre os joelhos. Eu podia sentir o peso das correntes nas minhas pernas, me lembrando o tempo todo que eu estava em um pesadelo sem fim.

Ousei por um segundo espiar a mente de Holly. A visão de Halley fez meu corpo aquecer em segundos e uma sensação boa tomar conta de mim. Eu podia sentir a felicidade de Holly refletindo em cada gesto dela, enquanto abraçava e apertava Halley contra si.

Segura, Halley estava finalmente segura.

Curvei a cabeça para o lado, ao ouvir o rangido se grades ecoarem pelas paredes de pedra. Havia uma única criatura aqui. Um mago que cuidava de tudo que eu precisava e principalmente, evitava que eu fizesse qualquer tentativa idiota de fugir. Mas é impossível. O encanamento na torre me impede de conhecer a total extensão do poder que ganhei.

—Atlas Ingram! —Encarei um ponto fixo no chão, ao ouvir aquela voz soar ali, dentro da torre aonde eu estava.

—Estou surpreso. —Falei, ainda encarando o chão, vendo apenas a sombra dele. —Você não costuma fazer visitas para fantasmas. —Ergui a cabeça, lançando meus olhos a ele. —Kian!

Ele riu, como se tivesse feito a pior piada do mundo. Segui Kian com os olhos, enquanto o via andar pela sala circular, olhando para a chuva do lado de fora.

—É vossa majestade agora. —Declarou e eu tombei a cabeça, fingindo uma falsa surpresa, enquanto erguia as sobrancelhas.

—É mesmo? —Passei a língua nos lábios. Eu passava tanto tempo sem falar, que as vezes tinha a sensação que não sabia mais o que era isso. —Estou bem desatualizado pelo visto.

—Muito. Mas estou aqui exatamente por isso. —Kian se escorou em uma das paredes, bem na minha frente, me encarando de cima. —Atualizá-lo sobre como as coisas estão.

—Imagino que muito bem, para você e sua amiga bruxa. —Afirmei, podendo ver na mente dele o quanto ele estava desesperado, depois dos últimos acontecimentos. —Algum acontecimento interessante?

—O rei de Andalor foi assassinado. Holly Orion terminou o serviço que seus pais não tiveram a decência de completar. —Kian riu e como um estalo, aqueles dois corpos pendurados em uma árvore, balançando com a morte pairando envolta, vieram a minha mente.

—Então já temos uma nova rainha? —Prossegui, engolindo com dificuldade.

Mentiras eram fáceis de serem contadas. E era mais fácil ainda concordar com as mentiras, apenas para vê-las aumentando até não poder mais.

—Eu sou o novo rei. —Kian declarou, como se o fato de eu me referir a ela como rainha fosse uma grande ofensa.

—Que peculiar. —Comentei, erguendo uma das sobrancelhas. —Achei que soubesse o papel indiferente que tem nessa guerra. Mas pelo visto, você se acostumou a ouvir falsas promessas.

—Falsas promessas? —Kian soltou uma risada e cruzou os braços na frente do corpo. —Sou eu quem estou usando a coroa. Eu estou me sentando no trono. Não ela.

—Por quanto tempo? —Ousei perguntar, vendo que ele já não parecia mais tão interessado em inventar mentiras.

—Eu sei que está tentando jogar comigo, Atlas. Sei que você saiu daquelas águas como uma aberração! —Kian exclamou, me fazendo perceber que ele estava mais do que desesperado. —Eu sou o rei e você vai passar o resto da sua vida aqui, mofando nessa ilha nojenta.

Não consegui evitar a risada que escapou pelos meus lábios.

—Fico me perguntando como você conseguiu entrar aqui, Kian, sem que seus pesadelos lhe atormentassem. —Ergui o queixo, observando as árvores do lado de fora. —Afinal é isso que a Ilha dos Pesadelos é, não? Nossos próprios pesadelos. —Abri um sorriso fraco. —Mas talvez você já seja um monstro o suficiente, até mesmo para sentir medo de alguma coisa.

—Da última vez que vi você, não estava tão atrevido a esse ponto. —Kian rebateu e eu segurei o sorriso que quis se formar no meu rosto.

Da última vez eu estava a beira da morte. Da última vez Halley estava sentenciada a uma vida numa cela. Da última vez Holly estava do lado errado da guerra.

—O que você quer comigo? —Questionei, mesmo podendo ver na sua mente o desespero, o medo de que eu também fugisse.

—Só queria ver como você estava. Se já tinha perdido de vez a lucidez.

Uma mentira e uma verdade.

—E então? —Acenei para que ele finalizasse, mesmo já sabendo a responda para aquilo.

—Você é o monstro da história, Atlas. Halley teria medo de você se visse o que se tornou. —Ele se aproximou, não o suficiente para que eu pudesse toca-lo se quisesse. Kian ainda era sensato o suficiente para saber que eu o quebraria se ele chegasse perto demais. —Mas pra ela, você já se tornou um fantasma. Um cadáver que vai atormentar os pesadelos dela.

—Pelo visto, as coisas estão muito ruins lá fora. —Murmurei. —Afinal, você está tão desesperado que veio até aqui, perder tempo falando com o monstro.

—Você não faz ideia do que está acontecendo lá fora, Atlas. —Ele apontou para mim e começou a se afastar, com um nojo evidente. —Deveria se sentir agradecido por não estar no meio de tudo isso.

Então ele virou as costas e saiu, partindo para as escadas na lateral como uma tempestade. Sorri com o canto dos lábios. Eu não só estava no meio de tudo, como era o centro de tudo, vendo e ouvindo os maiores segredos de todos.



Continua...

Reino de Sombras e Ascensão / Vol. 2Where stories live. Discover now