Cartas na mesa

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  "O que disseste aos teus pais?"

         Francisca deixou-se vencer pelo cansaço de organizar o convívio da associação, acompanhava Raquel com uma cerveja, na parte exterior do ateneu, ambas sentadas num degrau de escada, era visível o magnetismo, o interesse. Raquel estava extasiada.

"Disse-lhes que tinha ido jantar a casa do Paulo Jorge, eles adoram a família dele, querem que eu me case com ele, enfim, a Carmo e o Paulo Jorge andam a vigiar-me a mando do meu pai, não posso ser vista contigo nem com o teu grupo e se não estiver em casa à meia-noite terei problemas, sou uma Cinderela dos tempos modernos, ninguém sabe que eu estou aqui e sinceramente estou farta de ter toda a gente a decidir por mim, não fazer o que quero dá-me mágoa!" 

    A expressão de Raquel entristeceu, tentava olhar para Francisca mas não muito directamente, havia algo que queimava, também Francisca ficava impercetivelmente tensa.

  " Caramba, os teus pais são mesmo amantes do regime, tens guardas por todo o lado, não quero saber o que dizem de mim, já ouviste tudo, tenho a certeza, mas posso já confirmar que é tudo verdade, eu não quero saber do que dizem, quem lhes dera a eles, ter um pai como o meu, apreciei a tua rebeldia!"

 Francisca engolia o sofrimento diariamente, tal era a dor de não saber se o pai ia voltar, se ia sobreviver, Raquel quebrou barreiras tocando-lhe no braço.

 "Só sei que és corajosa, o que dizem ou deixam de dizer não me interessa rigorosamente nada!"

 Envoltas em pura admiração e atração magnética, Francisca acendeu um cigarro, o qual fumava lentamente como se nele aquecesse a sua garganta.

"Eu sei que compreendes!"  Francisca respondeu-lhe sem desligar o seu olhar do dela, 

 "anda, vou pedir o carro emprestado à minha tia para estares em casa a tempo!" 

    Uma viagem de carro silenciosa, no 2cv de Rosa Paula, desta vez era a sua sobrinha que conduzia, um pouco trapalhona, devagar para não errar, apesar de tudo, conhecia bem Lisboa.  Raquel não conseguia acreditar no momento que estava a viver, adorou o convívio, sentiu-se acolhida, sentiu que pertencia, Francisca sugeria livros a Raquel, os quais só podia ler às escondidas, olhava-a discretamente, queria guardar o brilho do seu olhar de mel, queria guardar o cheiro da sua colónia, ao parar o carro no largo onde Raquel vivia, esta encheu-se de nervosismo e logo abandonou a viatura.

 "Obrigada pela noite!" Francisca conseguiu ler nos seus lábios róseos, contentou-se a dizer adeus àquela rapariga, àquela alma bonita cujo os olhos cintilavam como estrelas.


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     Maria Raquel tentava abrir a porta de casa de forma silenciosa, julgava os pais no sono, ao entrar em casa retirou as botas brancas de cano alto e tentou caminhar até ao quarto com elas na mão, a casa era antiga, com paredes altas, chão de madeira, à noite qualquer passo era audível, sentiu um arrepio na espinha ao sentir que a luz da sala de estar se acendeu exibindo duas figuras em roupa de noite, Adelaide e Alberto, com uma expressão severa, implacável.

 "Jantar em casa do Paulo Jorge? quem te ensinou a ser tão mentirosa?" o homem gritou de forma agressiva, apoiado por Adelaide.

" Telefonámos ao Arménio e à Conceição, tu não estavas a jantar lá, telefonámos para casa da Maria do Carmo, filha, quantas vezes te disse que não te queria com aquela escumalha?" a sua voz soava estridente.

 Alberto aproximou-se da filha, repleto de agressividade.

 "Tu mereces não te esquecer do mal que fizeste, comportamentos de galdéria, tenho sido demasiado brando!" encheu-se de raiva e pontapeou uma das pernas da filha que chorava sem se conseguir defender, era uma luta em que um dos adversários era fraco, frágil como o vidro.

"Pai, por favor!" gritou quando percebeu que o pai lhe levantara a mão, mas os seus gritos foram insuficientes.

     Encheu-lhe o rosto de bofetadas enquanto Adelaide chorava encostada ao pé do relógio, puxou-lhe os cabelos com uma mão para lhe agarrar o rosto enquanto o bofeteava, a rapariga gritava mas ninguém a defendia,  Raquel também desistiu de se defender, os seus braços já se encontravam doridos, pontapeou-lhe os tornozelos com uma força brutal fazendo com que a jovem caísse no chão, não se compadecia pelo facto da filha implorar pelo fim daquela violência, levantou-lhe a mão novamente, mas Adelaide não se conseguiu conter.

"Alberto, não lhe batas mais, estás a deixá-la cheia de marcas!" a mãe disse com alguma histeria mas a voz dela fora insignificante.

 "Filha minha não anda metida com aquelas putas!"

   Encostou Raquel no outro canto da sala enquanto esta rastejava pelo chão, completamente acabada, cheia de lágrimas, com os olhos inchados, com o lábio inferior a esvair-se em sangue.



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