Vinte e cinco

31 3 0
                                    

— Não precisava daquilo.

Eu estava a sós com Milo agora. Graças ao nosso treinamento, esperamos até todos estivessem dormindo, para andar em passos silenciosos até o espaço livre de terra mais próximo. De braços cruzados e pernas afastadas, ele encarava o rio que passava não muito longe da nossa clareira, os ombros tensos exibidos por ele estar de costas para mim. Eu conseguia ver a culpa se formar ao redor dele, mas sabia que ele jamais admitiria aquilo. Mesmo assim, por algum motivo que eu ainda não compreendia, sentia meu corpo ferver de raiva com a forma como Milo havia se portado. Caminhei até ele determinada, e estendi a mão para socá-lo. Mas de alguma forma, seus sentidos sobrenaturais previram aquilo, e ele inclinou o corpo para desviar. Caí cambaleando para frente, e só parei quando ele agarrou a gola do meu macacão com facilidade.

— Não subestime um inimigo só porque ele está de costas.

Me equilibrando novamente nos pés agora firmes, girei o corpo completamente para Milo, que por algum motivo avaliava meu corpo. Dei um tapa em seu peito, e dessa vez, ele nem tentou desviar.

— Não mude de assunto. — Retruquei. — Por que é tão ruim Dali lutar?

Milo estava inexpressivo. Toda a raiva de seu corpo parecia ter sido extraída durante aquela briga, deixando apenas indiferença para trás. Ou foi o que eu pensei, porque Milo piscou, e quando seus olhos se abriram novamente, ele me encarou. E apenas por uma fração de segundo, pude jurar que vi medo ali.

— Confia em mim Kafenia?

Aquilo me pegou de surpresa. Seus olhos agora estavam fixos em mim, e a mão que havia me segurado, agora se estendia em minha direção. Não tive resposta quando seus dedos deslizaram pela minha mão, passando pelo meu antebraço até chegar ao cotovelo. Cada centímetro dele que tocava em mim, desencadeava uma cadeira de ondas elétricas pelas minhas terminações nervosas. Minhas bochechas esquentaram, em dois passos ele se aproximou. Com uma graciosidade que eu nunca tinha visto partir dele, ele se colocou bem diante de mim. Se não fosse pela sua altura elevada, nossos narizes estariam se encostando. Mas ali, com os pescoços inclinados e clamando pela proximidade, compartilhar a respiração era o máximo que podíamos fazer

— Confio.

A resposta foi sincera. Não consegui elevar mais que um sussurro, mas ele entendeu.

— Então acredite no que eu vou falar: Dalibur e Hakon não podem entrar em um ringue.

Ainda parecia egoísta, eu ainda achava que uma parte dele só queria tomar todo o dano possível no lugar dos irmãos. Mas apesar disso, apenas concordei e esperei que ele me soltasse. Não demorou muito, mas pareceu um esforço enorme me distanciar dele. Mas eu precisava me fortalecer.

Com o sol queimando em nossas costas, nos movimentamos. Mais rápido do que eu estava acostumada, mas ainda lenta demais para a velocidade normal de Milo. Ele me ajudou a correr, fazer flexões, e fazer alguns exercícios parada no lugar. Eu jamais esperaria que simples movimentos poderiam me fazer ranger os dentes de esforço, perfurando meus pulmões de exaustão. Mas no final do dia, depois de me banhar no rio com as pernas trêmulas, um sentimento indescritível de realização passou pelo meu corpo antes que o sono tomasse minha consciência.

E dessa forma prosseguimos, dia após dia, treinando enquanto Dalibur, Meri e Hakon dormiam, o mínimo de lutas possível, o máximo de exercícios criados por Milo. Eu esperava o dia em que ele usaria o bastão para me fortalecer, mas esse dia nunca chegava. Depois de uma semana dessa caminhada intensa até o porto, eu já nem tinha esperanças de isso acontecer.

Meridwen era rápida, silenciosa e as vezes uma só com a natureza. Era ela quem cuidava das caças matinais antes de acamparmos, e tinha se mostrado muito eficiente desde o começo. Com uma lança longa e pés descalços, a garota se enfiava na mata e em poucos minutos, voltava com caças o suficiente para nos encher mais do que havíamos nos acostumado nos dias antes dela. Quando as conversas na caminhada acabavam, ela preenchia o silêncio com histórias, ou até mesmo um cantarolar baixinho de uma bela voz.

A primeira aldeia que avistamos em semanas, era pequena para nossa sorte. Objetos como sabão e lâminas eram necessários, por isso paramos por lá. Daibur e eu ficamos encarregados de encontrar alguma estalagem para dormirmos durante o dia, enquanto Hakon e Meri buscavam os objetos necessários, e Milo... bom, Milo desapareceu antes de avisar aonde ia.

A pequena aldeia era composta apenas por uma rua principal, onde flautistas exibiam seu talento, vendedores gritavam por cima das notas e crianças corriam por todos os lados. As ruas que contornavam essa, eram compostas apenas de casas simples, e silêncio. Agarrei a manga do casaco de Dalibur, para arrastá-lo até uma das tendas de peixe, em que uma mulher magra gritava ao lado do marido rechonchudo. Manchas brancas se espalhavam pela pele escura da jovem, dando um ar de contraste brilhante com seus olhos imensos e inegavelmente negros. Como o brilho puro de uma ônix iluminada pela lua, a garota me encarou.

— Boa noite. — Comecei.— Sabe onde podemos encontrar um lugar para dormir?

O marido da mulher terminou de fazer a venda de um peixe bem ao nosso lado, e passou a se concentrar na conversa. Ele e a mulher trocaram um olhar antes que ela respondesse:

— Só há uma pequena estalagem na cidade, mas não acho que irão conseguir lugar esta noite.

Eu estava prestes a perguntar o motivo, mas Dalibur praguejou baixinho. Foi preciso apenas um olhar confuso em sua direção para que ele explicasse:

— Hoje é o dia do festival do fogo. A maioria das pessoas sai das aldeias maiores para acampar e observar o fogo nos céus.

Droga. O fogo nos céus que a família real ateia na direção das estrelas. Não teríamos lugar para passar a noite e o dia ali, e na floresta... estaríamos cercados. A mulher deve ter visto algo como desespero em nossos olhos, porque se levantou com o olhar mais manso que eu já havia visto. E depois de um rápido olhar para o marido, sorriu em nossa direção.

— Podem ficar em nossa casa.

Um sorriso se formou em meus lábios, e se não fosse aquela banca de peixes entre nós, eu teria abraçado a mulher. Dalibur mordeu o lábio inferior, uma pergunta incerta surgindo logo depois:

— E por acaso teria... lugar para mais três?

O homem rechonchudo de olhos claros deu um tapinha na barriga com um sorriso brincalhão nos lábios.

— Desde que eu não coma a sobremesa, tem espaço pra quantos quiserem!

Uma gargalhada escapou do fundo da garganta de Dalibur, me fazendo rir genuinamente também.

A Herdeira brancaWhere stories live. Discover now