Vinte e quatro

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Dalibur pareceu perder todas as forças que tinha ao me contar aquilo. Minhas próprias lágrimas molharam sua camiseta quando o cansaço o venceu, fazendo-o deitar em meu colo. Eu acariciei seu cabelo — que descobri de fato ser muito macio, e assisti enquanto sua respiração pesada inconsciente o levava para longe. Suas pálpebras fechadas tremulavam as vezes, mas aos poucos os movimentos leves da minha mão conseguiram acalmá-lo. Me senti culpada por nunca ter percebido de fato, como Dalibur dormia mal. Como seu corpo se remexia de um lado para o outro, sempre desconfortável. Ele era mais novo quando aconteceu, então deve ter sido mais difícil de superar a sensação de impotência.

Cerca de meia hora depois que Dali pegou no sono, escutei passos. Um par de passos pesados, e outro sendo arrastado logo em seguida. Senti meu sangue borbulhar de desespero, afastei Dali com cuidado, e acordei Hakon com o mínimo de barulho possível. O garoto arregalou os olhos castanho-esverdeados para mim, que tapava sua boca delicadamente com uma mão.

— Escute

Sussurrei o mais suavemente que pude, aproveitando que Dalibur também tinha acordado, para indicar a direção de onde os passos vinham. O caçula esfregou os olhos inchados, e se sentou na grama, ainda confuso. Um medo conhecido estalava em meu peito, a impossibilidade de fazer algo. Se fugíssemos, acabaríamos nos perdendo de Milo. Mas se o corpo arrastado fosse o dele... ficando para lutar, sem Milo ao nosso lado, o risco era infinitamente maior. O forte de Dalibur era a magia, feitiços poderosos levavam tempo e energia, e mesmo que ele conseguisse, não conseguiria fugir.

Cada uma das preocupações se dissipou, no momento em que o dono dos passos maiores entrou na clareira, se revelando completamente. Era Milo, com a expressão fechada de raiva, e... uma garota presa pelo seu braço direito, fechado em sua garganta. Ela devia ser pelo menos dez centímetros maior que eu, mas ainda parecia uma anã perto de Milo. Seus braços firmes seguravam o cotovelo de Milo, ela tentava se soltar.

— Encontrei ela nos arredores. Está nos seguindo desde o lobo.

Quando ele finalmente a largou, ela caiu no chão de joelhos diante de nós, o rosto em terra completamente coberto pelos cachos negros. Seus dedos se fincaram na grama molhada, os ombros tremiam. De medo. Dalibur começou a se aproximar, mas eu o impedi. Estendi uma mão na frente do seu abdômen, e pude sentir seu corpo tão nitidamente por baixo da camiseta fina, que recuei a mão o mais rápido que pude, e me coloquei sobre um joelho diante da moça.

— Por que?

A cabeça cacheada da garota de ergueu, revelando a pele morena da face em contraste com os olhos claros e dourados, cheios de água.

— E-eu só queria poder vê-la. — A garota se abaixou novamente, mas não parou a explicação. — Meus pais me ensinaram a usar a magia de localização para te encontrar, para seguir meu destino como sua escudeira, ou serva, ou o que precisar.

Foi só ali que me dei conta, de que não era por fraqueza que aquela garota se abaixava ao chão. Ela estava me reverenciando, como sua princesa e futura rainha. Não a princesa fraca que eu costumava ser, mas a rainha dona de um poder imenso, o futuro que meu povo esperava de mim. Milo ainda parecia desconfiado, mas eu não deixaria seu coração duro afetar aquele momento.

— Se me der a honra de andar com sua corte, eu...

— Não. — eu disse suavemente. Ela encolheu os ombros antes de erguer a cabeça mais uma vez. — Não preciso de uma serva ou escudeira. Mas pode viajar conosco para o reino branco, e a trataremos como uma de nós. — Senti Milo ranger os dentes atrás de mim. Por isso acrescentei: — Certo Milo?

Ergui uma sobrancelha para ele. E podia jurar que Milo apertava suas mãos tão forte, que corriam risco de se quebrar. Dalibur se aproximou, e ajudou a moça a se colocar de pé, logo que me levantei. Em seguida, Hakon estendeu o casaco que vestia, e cobriu seus ombros nus, pois ela vestia trapos que mal cobriam seu corpo.

— Qual é seu nome?

Hakon perguntou.

— Meridwen. Mas me chamam de Meri.

Inclinei a cabeça para Hakon, que começou a explicar para a garota como as coisas funcionavam ali. Ele disse o básico sobre a perseguição, e então disse sobre nossas viagens noturnas e descansos diurnos. Em pouco tempo ela já estava sentada ao lado de Hakon, comendo desesperadamente uma maçã que havíamos dado a ela. Meu coração se aqueceu quando seus olhos brilharam diante ao alimento, uma parte de mim se contorcendo de dor. Por quanto tempo aquela garota havia sentido aquela fome?

— Precisamos conversar sobre o porto.

Hakon soltou quando todos estávamos prestes a pegar no sono.

— Sobre o dinheiro que não temos para pegar um navio? — Milo perguntou. — Acho que seria bom mesmo.

Dalibur sentou. Ele parecia menos cansado depois do cochilo de minutos atrás, ainda mais interessado no assunto.

— Pensei em algo. — Todos estavam sentados agora. — Nas aldeias de mar sempre tem tavernas movimentadas. E se usássemos isso ao nosso favor, como o ringue...

Milo soltou uma risada seca. Dalibur franziu a testa, e assim percebi, que o do meio era o único ali que havia entendido. Os olhos prateados de Milo escureceram, brutalmente arrastando uma atmosfera pesada para o lugar.

— Resumindo, quer que eu arranje dinheiro pra vocês?

Os ringues de exibição, finalmente entendi. Eram pedaços de terra vermelha colocados dentro de tavernas maiores, onde os homens apostavam em pessoas para lutar. Era o modo mais fácil de conseguir dinheiro, porque até mesmo ao perder era possível levar uma quantia. A única regra era não desistir.

— Qual é Milo. Tá se achando se pensa que só você vai lutar.

Dalibur brincou, com aquele sorriso de lado que me fazia esquecer do diálogo. Milo revirou os olhos, e se apoiou nas mãos quando se inclinou para trás. O sol alaranjado banhava seu cabelo castanho como uma cachoeira de brilho, sua pele amena se eternizava em dourado brilhante bem diante dos meus olhos. Eu só queria agarrá-lo ali mesmo.

— E você só pode estar sonhando, se pensa que vou deixar.

Hakon começou a balançar a cabeça, como se já soubesse o que estava por vir. Dalibur se levantou da grama, e cruzou os braços nada fracos para o irmão.

— Acha que não consigo dar um chute na sua bunda agora mesmo?

Milo grunhiu, Meri se encolhendo em resposta. Lancei meus olhos na direção de Hakon, esperando que ele intervisse, mas nada. Ele apenas encarou o ar quando Milo se levantou. Ignorou quando ambos posicionaram as mãos fechadas na frente do rosto, os olhares fixos um no outro. Um arrepio correu pelo meu corpo quando o primeiro soco aconteceu. Dalibur era com certeza mais rápido, e por isso, conseguiu acertar Milo bem no queixo. Ele uivou machucado, e avançou. O próximo soco foi seu, se é que aquilo poderia ser chamado assim. O golpe atingiu o peito de Dalibur em cheio, o mandando para o outro lado da clareira. Seu corpo só parou de voar quando atingiu uma árvore com um estalo. Soltei um grito quando pensei que ele havia se quebrado, e corri em sua direção.

Milo não fez mais nenhum movimento para avançar, ele não precisava. Dalibur estava agora desmaiado aos meus pés, e o olhar que vi no fundo de Milo...Ele não fazia idéia do que seu poder era capaz. Mas eu soube naquele segundo, que assim que ele descobrisse, o mundo iria estremecer.

A Herdeira brancaNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ