Dezessete

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A caminhada até o pé da montanha foi mais do que cansativa. Andar pela mata fechada exigia uma atenção imensa, para o chão e para os lados, para frente e para o alto. Mas ao menos eu estava aguentando cada vez mais metros sem quase morrer resfolgando, sinal de que o veneno de anos estava finalmente saindo do meu organismo. Fazíamos pequenas refeições nos primeiros dias, nada de conversa fiada ou assuntos banais entre nós. As únicas palavras pronunciadas por Milo eram direções e avisos sobre o clima, ou onde deveríamos passar a noite. Hakon e Dali me perguntavam se eu estava bem e coisas assim, eu não estava afim de conversa. As coisas remoídas em minha mente se embaralhavam em novos pensamentos confusos, era difícil manter minha imaginação sob controle. O único que parecia entender meu espaço era Milo, que me olhava daquela forma intensa como se mensagens pudessem ser transmitidas com a força daquele olhar.

No primeiro dia descansamos em uma pequena clareira que encontramos no meio do caminho. Haviam muito poucos vilarejos no caminho até as montanhas, e a maioria fugia um pouco da rota. Então decidimos quase que de forma unânime, que nós contentaríamos com a floresta como refúgio. Era um pouco mais difícil dormir durante o dia quando não havia um teto para esconder a claridade, mas Dalibur resolveu isso pra mim.

Eu estava deitada sobre um braço, rolando de um lado para o outro por cima das folhas secas quando senti um tecido cair sobre meu rosto. Estava tão exausta, que só aproveitei o breu causado pelo tecido grosso do casaco, e apaguei. Isso aconteceu no nosso primeiro dia na mata, e seguiu assim pelos próximos dias.

No quarto dia, tínhamos que ultrapassar um pequeno riacho para chegar no pé da montanha. O que Milo chamava de "riacho" batia em meu peito, enquanto alcançava apenas parte de seu quadril. Ele atravessou primeiro, testando quais pedras eram lidas e quais mais perigosas, escolhendo o caminho até o outro lado. Depois foi a vez de Hakon, se arrastando com mais dificuldade através da correnteza, já que éramos mais fracos, iríamos no meio. Depois eu fui.

Dalibur encaixou as mãos firmes em minha cintura para me ajudar a chegar no rio, meu corpo se arrepiando contra a correnteza gelada de quebrar os ossos. Mas o macacão absorvia boa parte daquele gelo, e mais uma vez agradeci mentalmente a Milo por tê-lo feito. Um pé após o outro, avancei com dificuldade na água densa e transparente. Estiquei os braços para me equilibrar melhor, posicionando os pés descalços o melhor que podia. As solas gritavam conforme os arranhões permitiam a água gelada entrar, mas ignorei aquilo para apressar o passo. Milo segurou meus braços e me puxou de uma vez do outro lado, impaciente para continuarmos.

Dalibur não precisou de ajuda para subir na margem, e ofereceu um braço à mim quando continuamos a andar. Me apoiei contra ele para aliviar o cansaço e até um pouco do frio, e de relance percebi o estreitar dos olhos de Milo em nossa direção. Ignorei aquilo como ignorei cada sinal esquisito que meu corpo dava em sua presença, cada calor em lugares errados, cada arrepio que eu não conhecia. Vinha ignorando o garoto para me ignorar com mais facilidade.

— Como estão seus pés?

Eu estava tão perdida em meus pensamentos sobre como devia me manter longe de Milo, que nem notei quando ele se aproximou. Quando ergui os olhos, sua atenção estava completamente sobre mim, aquele olhar de prata sólida na minha direção. Quase me esqueci de andar, mas me recompus antes de responder.

— Firmes e fortes. Chego até a montanha sem precisar de sapatos.

Porque eu não vestia nenhum desde que havia fugido do palácio, meu lar. E por mais estranho que pudesse parecer, aceitar todas as verdades que Brank soltou naquela noite fora mais fácil que engolir a forma como Milo havia me olhando naquela noite. Quando me chamou de fraca, quando sem saber, me olhou como Brank me olhava... de cima.

— Na próxima parada para arranjar comida, eu consigo pra você.

Um inclinar de cabeça foi minha resposta. Eu não confiava em minha voz trêmula para responder naquela hora. Pequenos raios de sol começaram a nascer quando Hakon encontrou uma pequena caverna, sinal de que estávamos muito perto da montanha. Ajeitamos nossas coisas e eu agradeci, porque era escuro e úmido, com pequenos bolsões de água graças ao rio perto. Ajudei Dalibur a ajeitar nossas coisas nos sulcos fundos das paredes rochosas, antes que o cansaço me derrubasse por completo. Milo avisou que sairia, e simplesmente sumiu pela caverna afora, sem dar nenhuma informação adicional. Senti minha cabeça pesar quando me deitei ao lado de Hakon, escutando as histórias antigas que ele contava com toda a empolgação.

— Dizem que a primeira deusa veio do reino dourado, há muitos milênios atrás.

— Como eles surgiram? — perguntei entre um bocejo e outro.

Hakon franziu a testa para mim, como se fosse um absurdo que eu não soubesse. Mas a verdade era que a história dos deuses não era muito contada em minha casa, então eu só conhecia alguns nomes e poderes, rezava quando estava em perigo mas nunca pensei que realmente me ouvissem.

— Cada deus antigo, um dia já foi humano. Sempre tem algo que os leva ao ponto de observação, de onde governam e nos ajudam. — Dalibur se aproximou de nós, se sentando ao lado do irmão. — Não se sabe ao certo o nome humano da deusa Kheminten, mas ela manipulava fogo. Um fogo tão ardente que poderia incinerar o mundo em seu ápice vital. Seu parceiro, Ludovick, controlava os ventos. O amor deles era tão forte e intenso, que nem a morte pode os separar, criando assim o ponto de observação.

— A magia deles, — continuou Dalibur— era tão entrelaçada quando o amor que eles nutriam um pelo outro. Por isso quando a rainha morreu, o rei explodiu com ela, levando os dois a transcender a realidade que conhecemos.

Senti meus olhos se arregalarem diante daquilo. Como um amor podia ser tão intenso, uma ligação tão poderosa aquele ponto. Imediatamente eu quis saber mais, aprender mais, absorver tudo o que podia sobre os deuses que nunca me contaram.

— Quantos existem?

— Oito no total. — Hakon respondeu. — São eles quem dão os poderes especiais de vez em quando.

Poderes especiais. Só uma coisa me vinha na mente quando aquelas palavras ecoavam no ar:

— Como as sombras de Brank?

O rosto de Hakon empalideceu. E eu vi medo ali. Mesmo com a imensa distância entre nós e o príncipe, aquele garoto ainda empalidecia com a menção em seu nome. Brank havia feito sua fama. Eu me perguntava se o medo nos olhos castanho-claros de Hakon aumentaria se eu lhe contasse sobre a noite do vidro.

— Como a luz da sua mãe.

A voz de Milo ecoou no ar, junto com uma visão que fez meu coração trovejar. Ele estava parado na entrada da caverna carregando a carcaça de um lobo imenso, vestindo nada mais que sangue por cima das roupas finas.

A Herdeira brancaWhere stories live. Discover now