Dois

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Nunca senti que fazia parte de algum lugar de verdade. Observava estrangeiros nas festas especiais, e havia até visitado alguns reinos durante a vida. Conheci a família real de Norwi, morenos lindos de cabelos negros longos e corpos perfeitos, sorrisos incandescentes. Também cheguei a conversar com alguns moradores de Colpi, pessoas baixinhas com sotaque atestado, muito simpáticas e animadas. Mas em toda a minha vida, nunca descobri de onde eu deveria ser. Tudo a minha volta parecia se encaixar, a peça fora do lugar era eu. Só tinha uma coisa, ou melhor, pessoa que me fazia sentir menos deslocada. Um garoto que era tão estranho quanto eu, deslocado e sempre triste. Eu não sabia seu nome ou paradeiro, mas tinha completa certeza sobre sua solidão, e que sua comida era divina. O rapaz era ajudante na cozinha, o que eu achava ótimo quando de madrugada resolvia roubar algo da dispensa. Ele sempre estava lá, ombros caídos e olhos atentos, estranhamente atraente apesar da magreza e dos olhos fundos. Acho que minha aparência duvidosa acabou me deixando com um gosto igualmente duvidoso.

— No que está pensando?

Elize penteia meus finos fios frágeis enquanto me encara através do espelho da penteadeira, provavelmente observando a careta que faço quando penso.

— Brank me pegou ontem depois do treino.

O rosto belo e corado de Elize se transformou em uma imagem de terror puro. Ela sabia o que aquilo significava, todos ali sabiam como Brank simplesmente não suportava minha presença, e eu nunca entendi o porquê. Ela terminou o penteado e pousou as mãos nos meus ombros, em forma de apoio. Meiga e doce Elize, jamais entenderia minha frustração em ser a pior, mas tentava diminuir a dor.

— Acho que um dos convidados é um ministro importante de Chaguya. Ele tem uma filha na idade de se casar...

Me levantei do pequeno banco de madeira em um salto, tão animada que nem percebi o susto da minha irmã quando o banco caiu, causando um barulho alto.

— Uma noiva para Brank? É bom demais pra ser verdade!

Uma noiva acalmaria seu temperamento e o tiraria do reino por tempo o suficiente, até que papai morresse ou decidisse iniciar a corrida para um dos filhos assumir o trono. Seria tempo o bastante para eu me tornar forte sem interrupções, poderosa o bastante para pelo menos afastá-lo quando necessário. Minha irmã deve ter sentido pena da minha esperança enorme, porque se levantou também, e tentou abaixar minhas expectativas.

— É apenas uma especulação. Não crie fantasias absurdas está bem?

Meu sorriso fraco murchou, mas a pequena luz em meus olhos opacos permaneceu. Eu sustentaria a esperança de ver aquele maldito longe, mesmo que me custasse uma grande decepção mais tarde. Nunca entendi o motivo por trás de seu ódio por mim, muito menos a forma como meus pais fechavam os olhos para isso. Todos ali viam a forma como Brank me olhava em todas as refeições. As vezes eu via os criados se amontoando não enorme janela transparente do salão de luta, quando ficavam sabendo que Brank me treinaria. Algumas moças cobriam a boca com as mãos, o garotos balançavam a cabeça horrorizados diante das cenas de treino. Aprendi a me acostumar com o olhar de pena em seus rostos, mas se Brank sumisse dali... eu não teria que suportar mais aquilo.

Eu e minha irmã saímos de seu quarto, avançando pelo corredor largo que nos levaria até o salão de baile. Um banquete seria servido, e a atração principal, eram os convidados novos. Meu pai mantinha uma boa relação com todos os reinos ao nosso redor, uma decisão que tomou quando eu e Elize nascemos. Ali ele percebeu que a paz era um preço baixo para manter nossa segurança, então parou de invadir, e passou a convidar. Absolutamente todos os reinos que permaneciam de pé, eram convidados regulares de nosso castelo. Isso excluía o reino branco, mas isso era um assunto proibido até em pensamentos.

Já estávamos na metade do caminho quando o carteiro real cruzou a esquina, com braços tão cheios de correspondências, que cobriam sua visão. Não demorou muito, ele perdeu o equilíbrio e acabou se esparramando no chão, derrubando todos os papiros, cartas e pacotes consigo. Elize seguiu seu caminho, mas eu me abaixei no vestido cheio para ajudar o rapaz. Quando olhei em seus olhos, percebi que não era o carteiro comum.

Era o ajudante da cozinha, provavelmente substituindo o carteiro normal, que parecia bem mais bonito de perto. Notei as sardas, que daquela distância eram mais evidentes, o tom avermelhado do castanho não tão pálido quanto o meu, que nas pontas chegava a ser acinzentado. Esbocei um sorriso quando observei o que ele me oferecia, acompanhado de uma perfeita covinha na bochecha esquerda.

— Primeiro dia?

Perguntei enquanto juntava algumas cartas espalhadas. Ele sorriu um pouco mais antes de responder, abaixando a cabeça para também recolher.

— Espero que o último.

Juntei um punhado de cartas, e me levantei quando percebi que ele havia feito o mesmo com o resto.

— Vai ser mais fácil se eu te ajudar, o que houve com Hans?

Hans era um senhor de idade, simpático e sorridente que alegrava meus finais de tarde. Ele sempre me trazia cartas do meu tutor favorito, que teve que se mudar do castelo quando fiz quinze anos. Ele me ensinou tudo o que sabia até aquela idade, e continuava com seus concelhos através de tinta e papel até agora. Eram suas palavras de incentivo que não me permitiam desistir da corrida pela coroa.

— Ouvi que ele foi visitar a filha mais velha que teve um filho. Provavelmente volta antes das correspondências da próxima semana.

Aila, a filha sorridente que sempre visitava o pai. Eu gostava dela, gostava da forma como ela tratava o pai, com carinho. Comecei a seguir o garoto pelo corredor, assistindo enquanto ele colocava uma carta por debaixo da porta da minha irmã, e todas as outras depois disso. Cartas de burocracia ficavam no escritório do meu pai, cartas pessoas na porta de casa um dos filhos. E as dos criado, provavelmente eram entregues na cozinha, onde eles se reuniam na maior parte do tempo. Eu me sentia mal por não saber muito sobre os servos, por me concentrar mais em mim mesma na maioria do tempo. E olhando para aquele garoto ali ao meu lado, só podia enxergar uma possibilidade.

— Qual é seu nome?

O garoto paralisou no meio do movimento de colocar um pacote na frente do quarto da rainha, mas se recompôs em poucos segundos. Depois de concluir a tarefa, e deixar todas as coisas que precisava na porta da minha mãe, ele respondeu.

— Hakon.

— O meu é Kafen. — Respondi sem pensar.

Hakon sorriu, exibindo mais uma vez aquela convinha funda na bochecha, com um brilho de diversão nos olhos esverdeados.

— É, eu desconfiava disso.

A Herdeira brancaWhere stories live. Discover now