Vinte

29 4 1
                                    

Um amor tão grande, capaz de ampliar completamente um ser humano. Foi nisso que pensei durante todo o trajeto da subida restante, tentando não escorregar muito nas pequenas pedrinhas soltas no caminho. A noite parecia mais densa ali, quanto mais alto subimos, mais a escuridão parecia... palpável. O ar era rarefeito, dificultando ainda mais a respiração não muito fácil que eu sustentava precariamente. Ao contrário do que pensei, chegamos ao topo na metade da noite, meus pensamentos alimentando a força que me fazia escalar.

O fato de um deus mau ter abençoado Brank com poderes me assustava. Mas depois de anos inteiros convivendo em um lar repleto de ódio e competição, eu olhava aqueles garotos e sentia esperança. Porque mesmo com aquela rivalidade típica de irmãos, eles se amavam de uma forma que eu não conhecia ainda. Era diferente de Elize, Axel e Brank. Os três que eu pensei serem meus irmãos, eram uma unidade cada um. Fortes e determinados, poderosos individualmente. Mas aqueles três... eles se comunicavam com um olhar, respondiam provocações com sorrisos, e mesmo com o humor azedo de Milo seguiam com queixos erguidos. Talvez minha relação com meu irmão de verdade pudesse chegar aos pés aquilo.

— Tem um pequeno córrego aqui. — Dalibur apontou um dedo para um fluxo fino de água limpa. — Se o seguirmos para descer, vamos chegar em uma cachoeira quente para tomar banho.

Todos pareceram de acordo quando começamos a descer. As pedrinhas soltas eram mais inconvenientes agora, a escuridão atrapalhava mais. Pisar em falso poderia custar uma vida, e a corda que nos ajudou a subir poderia muito bem nos trair agora. Flexionei os joelhos para ter mais estabilidade, e comecei a me arrastar para baixo. Um movimento que eu não esperava, me fez perder a concentração dos meus próprios pés, e torcer o tornozelo. A dor invadiu desde lá até a extensão da minha perna, mas eu segurei o grito. Minha outra perna não foi o suficiente para me sustentar de pé, e levou segundos para que eu constatasse que a única saída para não me arrebentar inteira, seria esticar as mãos para frente do rosto.

Exatamente como imaginei, meu corpo se chocou contra o chão, emitindo raios de dor intensa pelos meus ossos, por todos os lados. Mas o rosto estava protegido, o que para meu azar, não foi o suficiente. Minhas mãos apenas evitaram o encontro entra a rocha e meu rosto, mas não me impediram de começar a rolar. Senti a corda puxar Dalibur com o impulso, o segundo corpo que se desequilibrou atrás de mim. Ele gritou ao cair, o que alarmou Milo e Hakon, os dois finalmente notando o acontecimento para nos ajudar. O segundo agarrou meus tornozelos, enviando ondas de dor pelo torcido, mas ao menos conseguindo me parar. Milo deslizou de uma forma felina pelas pedras até Dali, e esticou a mão para agarrar o colarinho do irmão.

— O que diabos aconteceu?

Dalibur havia ralado metade do rosto, mas o resto de seu corpo parecia intacto. Segurei o tornozelo virado de mal jeito ao me sentar no chão, avaliando quanto tempo precisaria para me curar.

— Eu não sei. — Respondi. — A noite parece mais escura hoje.

Milo caminhou até mim, e se sentou ao meu lado. Puxando de leve o tecido do meu macacão para cima, ele avaliou o inchaço do meu tornozelo. Franzindo a testa, ele passou os dedos longos pela minha pele, e tive que morder o interior da bochecha para não exibir nenhuma reação. Dalibur começou a farejar o ar, como um predador localizando sua presa. Hakon apenas observou, enquanto Milo me curava. Pelo visto a magia dele era mais poderosa do que parecia.

— Magia. — Dalibur suspirou. — A noite não está mais escura por acaso. Tem magia no ar. E a fonte está próxima.

Hakon entendeu aquilo como um sinal, erguendo os braços para o céu. Meu queixo caiu quando um tecido fino de noite se afastou de nós, como um véu brilhante de estrelas senti empurrado pelas mãos de Hakon. Seu poder, seja lá o que fosse, clareou nossa visão com o brilho da lua, que havia sido oculto por alguma coisa. Aquele belo manto de escuridão ondulou, até estar longe o suficiente para se dissipar em nada. Meu queixo caiu, mas Milo não me deu tempo para pensar quando agarrou meu pulso, e começou a me conduzir na direção de uma fissura na rocha.

Chegando mais perto eu vi, que não era uma fissura, mas uma espécie de abertura. Do ângulo em que estávamos, não dava pra ver, mas ao me aproximar com cabeça levemente inclinada para a esquerda... eu conseguia enxergar a abertura de uma caverna. Hakon entrou primeiro, e esperou que já estivéssemos dentro do local escuro e úmido para abaixar as mãos, trazendo o fino manto de escuridão consigo. Sem entender direito, e fraca demais para fazer perguntas, apenas me recostei contra uma das paredes rochosas, e senti o sono pesar minhas pálpebras.

Usamos pouco mais que a metade da noite para chegar até aquele lugar antes que aquele poder nos assustasse para dentro d gruta. Isso significava que teríamos mais tempo livre no dia seguinte, e em outras palavras, estaríamos atrasados. Mas Milo pareceu ter pensado em tudo, porque logo que o sol raiou, senti sua mão pesar sobre meu ombro, me acordando. Não pensei muito sobre como minhas bochechas queimaram quando o vi diante de mim, vestido apenas com a calça pelo calor da gruta, seus músculos esculpidos agora exibidos e banhados em uma luz laranja suave, fruto de uma bela magia luminosa que Dalibur havia criado.

— Venha.

Doce como sempre, Milo se afastou do local onde eu havia dormido, na direção da saída. Acompanhei seus passos largos o melhor que pude, tropeçando em pequenas pedras e estreitando os olhos para o breu da gruta, mas sem diminuir o passo. Emergimos para fora de uma vez, o sol forte no meio do céu que feria meus olhos, indicava que ainda não era hora de partirmos. Eu estava prestes a questioná-lo sobre isso, quando seu corpo girou em minha direção.

— Eles me proibiram de fazer isso, dizendo que podemos proteger você. — Ele começou. — Mas eu vou te dar a escolha.

Franzi a testa para ele, tentando encontrar sentido em suas palavras. Com a distância de um braço entre nós, respirei fundo quando Milo deu um passo à frente, fixando seus olhos nos meus.

— Princesa Kafenia Ebwuk do reino branco. — Milo respirou fundo, como se aquelas fossem palavras importantes, sagradas. — Quer aprender a se defender? Por que essas cicatrizes... — Seus olhos caíram para um local coberto do meu ombro, onde ele sabia que existia uma grossa cicatriz — me mostram que sabe aguentar a dor. Talvez não revidá-la.

Meu peito se inflou de algo que parecia ser certeza. E quando aqueles olhos intensos banhados em mármore e prata se ergueram para os meus castanhos novamente, algo mudou. Alguma parte minúscula de medo se dissipou, e a certeza foi maior que tudo quando me peguei dizendo:

— Sim.

A Herdeira brancaWhere stories live. Discover now