Doze

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De todas as pessoas, aquela era a última que eu esperava ver no momento. Só a voz, fraca e amistosa que me trazia tantas lembranças... Nunca tive muitos amigos. Poucas vezes ousei conversar com alguns convidados do meu pai, as meninas que não se encantavam por Axel e os garotos que não gastavam toda a sua energia em Elize. Mas ele, foi o único garoto daquele castelo além de Axel, com quem troquei mais de duas palavras sem me sentir desconfortável, ou com uma vontade inexplicável de desaparecer. No pouco que o conheci, não senti que me julgou ou que me viu como a garota fraca, amaldiçoada. Hakon me via como uma igual.

— Ela é confiável Milo. Deixe-me entrar.

Hakon aparentemente conhecia eles. E... Milo? Era esse o nome do garoto implicante e sem-graça? Segundos depois ouvi passos. Pares de botas firmes contra a madeira fina do chão, até a cozinha. Empurrei a porta do armário, e quase desabei diante da cena. Hakon estava apoiado contra Dalibur, sangrava pelo nariz e exibia marcas roxas pela pele à mostra. Corri até ele e passei meus braços ao redor de sua cintura, em um meio abraço que ele aceitou.

— Você está bem?

Era irônico justo ele me perguntar isso, o garoto que sangrava e ainda assim forçava um sorriso nos lábios.

— Estou ótima, mas você aparentemente não. O que houve lá?

Hakon respirou fundo.

— Seu irmão... Axel.

Meu corpo travou ali. Agarrei meus próprios ombros e apertei a superfície ossuda com força, tentando não me desmontar diante da intensidade da preocupação em seus olhos.

— Brank o pegou. E de alguma forma seu pai não descobriu... eu só o vi quando tive que ajudar Ana a limpar seu quarto. — Ele fechou os olhos por um instante, eu quase podia sentir seu estômago se revirar. — Ele sangrava muito Kafen. Eu sinto muito.

Um nó se formou no fundo da minha garganta, queimando e me impedindo de falar. Senti calafrios pelo corpo, a culpa por tê-lo deixado para trás.

— Ele está vivo?

Eu estava conseguindo segurar as lágrimas, pelo menos até aquele momento. Meu coração se quebrava pouco a pouco a cada vez em que seu olhar de pena me alcançava, o tipo de olhar que eu recebia de todos, menos dele.

— Por enquanto sim. Mas não sei se dura muito. Brank quase me pegou. Foi o poder de Axel que me ajudou a chegar até aqui, e se Brank descobrir onde eu moro...

Os roxos e o sangramento não eram por batalhas no meio do caminho então, mas pela pressão do poder direto contra um corpo despreparado como aquele. Milo saiu da cozinha no exato momento em que Hakon terminou a frase, e pelo barulho, começou a vasculhar os quartos em busca de algo. Dalibur ajudou Hakon a se sentar em um dos bancos gastos de madeira, e saiu para ajudar o amigo. Não demorou muito para que eu me desse conta do que faziam: malas para viagem. Estávamos fugindo.

— Vocês são irmãos?

hakon sorriu. Esticando as sardas salpicadas em seu rosto, sardas avermelhadas como as que eu havia notado em Dalibur.

— Sou o mais velho. Nasci em Whinthem, por isso... a aparência frágil. O mais legal, Dali, é o mais novo.

— Milo deve ser o do meio.

Não entendi muito bem a relação entre sua aparência frágil e seu local de nascimento. Mas de fato, os outros dois pareciam bem maiores e mais fortes, mais saudáveis.

— O durão.

Não levou muito tempo até que o próprio entrasse novamente na cozinha, carregando duas sacolas aparentemente pesadas em cada mão. Apesar da aparência dura, eu sentia que havia algo bem frágil dentro dele. Dalibur entrou logo atrás dele, com uma mochila maior e um pouco mais firme.

— Vamos com você até perto do porto.— Milo declarou.— Só até encontrarmos outro lugar para ficar.

Eu já estava concordando com a cabeça quando Hakon se levantou, um pouco cambaleante, e apontou um dedo firme na direção do rosto de Milo.

— Fale por você, eu vou com ela até o reino branco.

Senti algo diferente se formar no meu interior, algo entre esperança, orgulho e felicidade. E estava prestes a entender isso, quando Dali levantou um questionamento que passou a me incomodar.

— E como sabe que é pra lá que ela está indo?

Os irmãos se encararam, quase tão confusos quanto eu. E por fim, pela primeira vez em minha presença, exibiu uma voz firme de irmão mais velho, da qual nenhum ali seria capaz de questionar.

— Vamos sair daqui. Vou ter muito tempo para explicar-lhes o que quiserem saber.

Os irmãos concordaram, e sem mais nenhuma palavra se moveram para sair. Usei o resquício de utilidade que eu pensei ter, para usar meu corpo como apoio para Hakon. Ele se apoiou contra mim, e assim seguimos pela porta da frente, vestidos com nada mais que capuzes grossos e o manto da noite escura para nos proteger. Carregar armas nos deixaria ainda mais lentos, então nossa única vantagem era a aparência esfarrapada demais que dificilmente chamaria a atenção.

Caminhamos pelas bordas da cidade, por ruas levemente movimentadas, evitando becos escuros demais. Milo andava na frente, a pose de peito cheio nos trazia certa proteção. Eu e Hakon cambaleávamos no meio, ao passo que Dalibur protegia nossas costas atrás. E assim andamos, durante alguns minutos até conseguirmos sair da cidade. Seguimos por uma pequena trilha coberta de árvores por mais ou menos duas horas, até Milo parar, e retirar um mapa do bolso. Eu arfava e tremia de cansaço, mas tentava ser o mais silenciosa possível. Não estava acostumada a resistir tanto ,e talvez apenas o medo da morte tenha me mantido firme por todo aquele trajeto. Me apoiei contra um toco de madeira no chão quando Milo abriu o mapa, já que Hakon havia parado para se deitar no meio da terra.

— O caminho mais rápido é pelas montanhas de Sur. Mas eles dois não aguentariam uma hora. 

Dali contornou o irmão estirado no meio do chão para observar o mapa aberto nas mãos de Milo, analisando com cuidado enquanto coçava a cabeça.

— Mas vamos perder uma semana se formos pelo rio. Não sabemos até quando podemos permanecer anônimos.

— Não adiantaria nada chegarmos até o pé da montanha daqui dois dias só para um deles escorregar no topo. 

Eu e Hakon trocamos um olhar. Eles estavam literalmente nos considerando como pesos mortos a mais bem ali em nossa frente. 

— Pois meu voto é pelo caminho da montanha. — Declarei. — Sangrei muito mais do que podem imaginar, escalar uma montanha não deve ser nada. 

Milo ergueu uma sobrancelha em minha direção, um sorriso se formou no rosto de Hakon e Dalibur. 

— Aposto que você cairia no primeiro metro. 

Me levantei do tronco e avancei na direção daquele maldito convencido de olhos prateados, juntando todo o meu autocontrole para não ceder diante daquela pose imponente.

— Você não tem nada a perder então, certo? Não ganhei essas cicatrizes por ficar sentada acenando para o público.

Assim que aquela frase saiu pela minha boca, eu me arrependi amargamente. Porque aquilo deveria ser dito por guerreiros, que arriscavam suas vidas e ganhavam cicatrizes, não por alguém como eu, acostumada a apanhar. um uivo alto cortou o ar, os olhos de Milo se arregalaram. e eu só conseguia pensar, que não tinha forças o suficiente para correr de um lobo agora.

A Herdeira brancaWhere stories live. Discover now