Nove

33 4 0
                                    

Eu lutava pela consciência que ameaçava me deixar a qualquer momento. Me sentia patética, depois de ficar desmaiada por horas, e ser carregada por uma longa distância, meu corpo não se sustentava sozinho. Quis que a terra me engolisse quando os uivos aumentaram de intensidade, meu batimento cardíaco quase alcançando o tom. Cada célula minha adormecia pouco a pouco, o ápice da exaustão que eu nunca consegui dominar ao meu favor. E foi assim que eu apaguei.

A primeira coisa que percebi quando acordei, foram as pálpebras pesadas. O escuro era quase tão confortável quanto o colchão macio debaixo de mim, senti plumas fofas perto do meu nariz. Uma pressão leve estava apoiada em cima do meu peito, algo que fazia um barulho engraçado. Aos poucos abri os olhos, piscando para me acostumar com a claridade do que parecia ser um pequeno quarto aconchegante. Avistei o gato em cima de mim, o dossel da cama, e logo na porta do cômodo... uma pessoa.

— Quem é você?

Foi minha primeira grande pergunta, com a voz seca e falhada, nada elegante. O garoto devia ser da minha idade, tinha a pele em um tom quase claro, quase escuro e os olhos verdes, um cabelo castanho que parecia macio. Seu rosto era bonito, ombros largos e uma altura notória, a besta presa em sua cintura me fazia pensar que se tratava de um caçador. As roupas de couro e as cicatrizes espalhadas pelas partes que eu podia ver, me ajudavam a concluir isso também. Um pequeno sorriso se formou em seus lábios definidos.

— Eu que te pergunto.

Estendi a mão para o pequeno animal em meu colo, e ele se desviou para meu lado. Assim me levantei, e corri os olhos pelo lugar antes de responder:

— Kafenia.

Ebwuk. Kafenia Ebwuk, mas aquele garoto não precisava saber daquilo. Quanto menos pessoas soubessem da minha verdadeira identidade, mais fácil seria evitar a morte. O menino me olhou de cima abaixo, me fazendo perceber finalmente que eu não estava com as mesmas roupas de quando havia corrido do castelo. Ao invés disso, uma camiseta larga e uma calça igualmente enorme estavam em meu corpo, ao menos cheirosas apesar do suor presente em mim. Aquele garoto havia me visto nua? Não era como se tivesse muito a se ver afinal, aquilo não deveria me incomodar tanto.

— A princesa amaldiçoada.

Uma risada seca saiu de sua garganta. O garoto se desencostou da porta, e começou a caminhar até uma pequena mesa no canto do quarto. Comecei a pensar. Era um pequeno quarto, provavelmente de uma pequena casa. Aquele garoto era um caçador, provavelmente acostumado com o trabalho duro para ganhar quase nada em troca de muitas quase mortes.

— Se me ajudar a chegar no porto, te pago mais do que já sonhou.

Ele elevou uma sobrancelha. Droga. Ele sabia que eu estava fugindo, a falta de sapatos nos meus pés ou as manchas escuras de terra no meu corpo.

— Por que acha que eu quero ser pago para ser morto princesa?

Mordi o interior da bochecha, pensando. Aquele menino parecia uma pessoa difícil, eu tinha que admitir. Mas depois de anos lidando com Brank, eu podia dizer que tinha certa vantagem com esse tipo de dificuldade.

— Gosta desse reino?

Uma risada curta.

— Ninguém gosta desse reino.

Aquilo mexeu em algo no meu interior. Mas eu não podia me mostrar afetada, não antes de conseguir ele pra meu lado.

— Ótimo. Venha comigo para o reino branco, te recompensarei.

Cruzei os braços na frente do peito, a generosa quantidade que não deixava que me confundissem com um homem. Sempre achei que fosse abençoada por isso, era fina em todos os aspectos, menos ali. Os olhos verdes do garoto não caíram dos meus, e aquilo me orgulhou um pouco.

— Você é pequena demais pra prometer coisas tão grandes.

O garoto se aproximava agora, com passadas largas ele se sentou na ponta da pequena cama, o que era próximo demais. Eu o via mais de perto, reparei nas sardas salpicadas em sua bochecha, no anel dourado que se mesclava com o verde em seus olhos. Era lindo, a junção de cores mais linda que eu já havia visto. A linha definida de sua mandíbula ficou exposta quando ele indicou um pequeno móvel ao lado da cama com o queixo, onde algumas trocas de roupa repousavam.

— Tem um banheiro no final do corredor. Você pode se lavar e vestir a roupa que melhor servir.

Observei os vestidos longos, simples como os de uma camponesa, mas muito bem feitos e de bom tecido. Ele parecia jovem demais para ser um pai de família, mas talvez eu tenha me enganado. O garoto se levantou, mas minha pergunta o fez parar no meio do caminho.

— Sua mulher não se importa?

Ele soltou uma risada baixa, que por algum motivo fez os pelinhos de minha nuca se arrepiarem. Sua mão se apoiou na cintura de forma preguiçosa, e ele se virou com um olhar de ironia, que me fez queimar.

— Nem sabe meu nome e já está se atirando? O que houve princesa? Não tinham muitos homens naquele castelo?

Tive que morder a parte interna da bochecha para não dar uma resposta que me complicaria ainda mais. Aquele garoto seria um perigo se percebesse que tinha qualquer tipo de domínio sobre mim. Por isso, eu não o deixaria saber disso. O garoto não esperou por uma resposta, apenas deu as costas e saiu do quarto. Passei os cinco minutos seguintes encarando o lençol macio, cogitando tomar coragem, e um banho. Depois que me dei conta de como devia estar horrível daquela forma, coloquei o vestido nos braços e sai do quarto a procura do banheiro.

Aquela era definitivamente uma casa pequena. Quando saí do pequeno quarto avistei a porta de saída, uma pequena sala, e duas portas além da que deveria ser o banheiro. Não vi cozinha, por isso imaginei que uma das portas devia ser o quarto da dona do vestido, e a outra... a cozinha em si. Isso significava, que eu estava no quarto do garoto, havia dormido em sua cama. 

Ignorei o calor que invadiu minhas bochechas quando entrei no banheiro, determinada a esquecer aquele frio na barriga que eu não entendia nem um pouco. E quando fechei os olhos ao mergulhar na água morna, pensei do fundo do meu coração que estava a salvo.

Mas o mau nunca dorme.

A Herdeira brancaOnde histórias criam vida. Descubra agora