Três

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Hakon e eu levamos poucos minutos para terminar de entregar todas as correspondências. Foi divertido escutar a voz rouca de meu novo amigo, mesmo quando eram reclamações divertidas sobre seu trabalho árduo. Meu riso saía fácil com ele, e eu não conseguia me lembrar de um dia em que havia rido tanto. Mas a alegria acabou, quando uma garota de tranças loiras e avental correu em nossa direção, o chamando urgentemente até a cozinha. Ele teve que me dar a última carta que sobrara, para que eu colocasse debaixo da porta do meu pai. Dei um pequeno aceno a ele enquanto a garota o arrastava pelo colarinho, e decidi entregar a carta depois da festa. Enfiei o papel em um dos elásticos da parte de dentro da saia, e retomei meu caminho para o salão de baile.

As imensas portas duplas de metal foram abertas para mim, revelando um local lotado. Do teto abobadado, pendiam lustres de cristal, o ouro talhado nas paredes entrava em contraste com o mármore branco do chão. Os convidados rodavam por todos os lados em seus vestidos bufantes e ternos alinhados, não levei muito tempo para encontrar o vestido rosa vibrante de minha mãe. Seu penteado imenso também não era difícil de encontrar, mas Axel me encontrou antes que eu começasse a andar até ela.

— Papai estava te procurando. Estávamos esperando por você para que os visitantes fossem apresentados.

Meu irmão enlaçou um braço no meu, e começou a me arrastar pelo salão. As vezes eu me esquecia da pouca importância que tinha naquele lugar, mesmo que Axel se esforçasse em me lembrar aquilo. Respirei fundo tentando manter o equilíbrio em cima dos saltos, senti a respiração falhar algumas vezes. Eu mal havia me mexido e ali estava: o cansaço inexplicável depois de qualquer mísera atividade simples.

Meu irmão me levou até o canto elevado do salão, onde meu pai esperava com o braço dado com minha irmã. Brank estava do seu outro lado como sempre, a postura rígida e a expressão fechada em minha direção. Na maioria das vezes, minha mãe entretia os ministros e fofoqueiros do reino, enquanto meu pai nos apresentava aos estrangeiros. O rei passou um braço pelo meu livre, enquanto três figuras emergiam da multidão curiosa. O primeiro que reconheci foi o rei, com a coroa vermelho-sangue em cima dos cachos negros. Depois sua filha, uma das mulheres mais belas ali presentes. Sua postura era perfeita, o vestido aberto na frente exibia as pernas longas, a coroa de prata em cima dos cachos longos e volumosos do cabelo. Sua pele era escura como a noite, seus olhos negros como ônix pura, o rosto simétrico quase tão lindo quanto o do maldito Brank. Percebi a forma como seus olhos perversos caíram para os seios quase a mostra da garota, seu olhar que fez meu estômago se revirar. A rainha surgiu logo depois, cumprimentando a todos.

— Estes são meus filhos, por ordem. Branket, Axellut, Elizemet e Kafenia.

O olhar dos três acompanhou a mão do meu pai, mas se detiveram em mim. Claro, todos acharam estranho meu tamanho, minha aparência fraca e o fato de eu estar naquela família. Se não fosse gêmea de Elize, eu mesma desconfiaria não fazer parte dessa família.

— É um prazer enorme conhecer a todos. — O rei falou, a voz alta ecoando pelo salão. — Essa é nossa filha mais nova, Jheman, a mais velha ficou cuidando de negócios em nossa terra.

E assim estava finalizada, a grande apresentação. Meu pai se aproximou do casal para assuntos mais oficiais, enquanto Axel gentilmente convidava a princesa para se juntar a nós. Não demorou muito para que Brank esticasse suas garras até meu cotovelo discretamente, que ainda estava dolorido pelo aperto da noite anterior.

— Onde diabos você estava?

Sua voz áspera invadiu meus tímpanos quando ele me segurou por trás, mas dessa vez Axel estava ocupado demais para notar. E a princesa que deveria servir para distraí-lo, apenas serviu como uma boa oportunidade para ele colocar as mãos em mim novamente.

— Ah, você sabe... Pelos corredores.

Não era uma mentira. E Brank entendia bem de mentiras. Por isso suas sombras me cutucaram devagar, ele sabia que tinha mais. Segurei um urro de dor quando senti o sangue quente jorrar pela minha pele, a ardência me alcançando até os ossos.

— Com quem?

Eu não podia dizer. Hakon com certeza seria punido pelo meu atraso, e se Brank resolvesse cuidar disso...

— Um amante. — Menti.

Mas aquela mentira não fez a ira atiçar as sombras em minha direção. Pelo contrário, enquanto esperava por uma punição silenciosa, o que recebi foi... gargalhadas altas. Profundas, que fizeram meu corpo tremer com o contato. Brank me girou para ficar de frente pra ele, e correu seus olhos claros por mim. Olhos nojentos.

— Uma garota como você não serviria pra essas coisas.

Eu tremi de ódio. Porque sabia o que sua mente horrível estava pensando. Vi a forma como seus olhos se fixaram em meus seio, na falta de gordura em mim, e as cicatrizes que ele mesmo havia causado em minha pele. Tremi de ódio porque ele estava certo, e eu nunca jamais seria capaz de evitá-lo. Nem com a ajuda de uma linda princesa, ou meus irmãos, ou toda a magia possível. Eu seria sempre a garota que apanharia para ele, e um dia... minha morte estaria em suas mãos. Não me importei mais com a data, já que qualquer caminho me levaria para o mesmo fim. 

— Não me diga que... vai chorar?

Abaixei a cabeça para esconder o rosto, porque a vergonha queimava em minhas bochechas, as pessoas estavam desinteressadas em suas próprias conversas, minha mãe já não era o suficiente para entretê-los. Pensei que fosse explodir de vergonha, pensei que não poderia piorar... quando ele me arrancou a única coisa que eu ainda tinha... o direito de me esconder. Brank esticou um dedo até meu queixo, e com uma força absurda, forçou meu rosto para cima. Seus dedos eram fortes e rígidos como ferro, jamais se dobravam se não fosse de sua vontade. Já eu... eu só queria que meu corpo tivesse metade daquela força.

— Chega. — Axel surgiu atrás de Brank, quando notou o que acontecia. — Estão todos olhando.

Brank grunhiu, como o animal que era, mas não deixou de me encarar.

— Deixe que vejam a cor do sangue dela.

Uma sombra fina se esticou a partir de seu pescoço, em minha direção. Mas Axel, meu salvador, usou sua magia latente para impedi-lo. Eu nunca havia visto os dois entrando em conflito antes, porém em minha mente. sempre achei que Brank era mais poderoso. Mas depois daquilo... depois da pequena gota de suor que escorreu pela testa de Brank, assim que seu poder entrou em contato com o de Axel... eu já não tinha mais certeza.

— Eu disse chega.

Foi um sussurro repleto de poder, que finalmente me libertou daquelas garras frias. E o alívio foi tão sufocante, que tive que correr para longe dali, só assim escondendo as lágrimas que me cegavam.

A Herdeira brancaWhere stories live. Discover now