Vinte e dois

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Não sei quantas horas eu tinha passado agarrada a ele, mas quando meus joelhos tremeram, ele me tomou em seus braços e se sentou na rocha da montanha. Parecia que nada mais importava, até mesmo quando o sol começou a se esconder atrás da colina verde. Depois de um tempo, suas mãos começaram a passear pelo meu cabelo fraco, que agora assumia um tom mais claro de cinza nas pontas. Minhas mãos passaram a descansar em suas costas, minha cabeça se encaixou no encontro entre seu pescoço e ombro, aquele local macio e cheiroso que me fez esquecer do horário.

— Precisamos ir?

Foi a primeira coisa que consegui dizer depois de muitas horas, a frase rouca pela inatividade das cordas vocais, a garganta coçando por mais. Milo respirou fundo, como se um grande preparo fosse necessário para a frase que viria a seguir.

— Receio que sim.

Meu peito murchou. Talvez por ter percebido meu desânimo, as palavras fluíram livremente pela boca de Milo:

— Podemos fazer isso sempre.

Um frio se instalou na minha barriga, eu quis apertá-lo mais forte.

— Claro.

Foi tudo o que a emoção daquele momento e permitiu dizer, quando começamos a nos levantar. A caminhada até o riacho foi rápida, e Milo vigiou a borda do local enquanto eu me lavava. Suor e pensamentos forram varridos pela água, deixando uma consciência e um corpo limpos para trás. Na vez de Milo, tive usar cada grama de vontade dentro de mim para não olhar para trás, me distraindo com as pequenas formigas que formavam uma fileira de folhas flutuantes até um pequeno arbusto próximo. A vegetação ali era mínima, mas ainda assim existente por conta da pouca água que o rio possuía.

Caminhamos devagar de volta para a fissura na parede, silenciosos o suficiente para não atrapalhar o sono leve de Hakon. Como se aquele momento intenso na planície da montanha jamais tivesse existido, Milo se sentou em um canto da caverna, e me deu um último olhar intenso e compreensivo antes de fechar o rosto. A expressão que ele precisava exibir para não surgirem perguntas. Eu entendia. Mas parte de mim queria aquele meio sorriso de volta.

Já estava completamente escuro quando Hakon acordou, balançando o braço de Dalibur. O segundo esfregou os olhos por alguns segundos antes de se levantar completamente, o cabelo castanho-claro bagunçado de uma forma adorável. Ajudei eles a ajeitar o pouco de comida que tínhamos de volta na mochila depois do dejejum, ou seja lá que refeição andávamos fazendo nos últimos dias. E com isso, saímos. Nem um quilômetro depois, Hakon tomou o passo ao meu lado, e começou a me ajudar a descer o terreno enquanto falava.

— Você precisa saber princesa Kafenia, não vai ser tão simples retomar o trono.

Eu já esperava por aquilo. Se um herdeiro legítimo tinha que provar seu valor, o mesmo deveria acontecer comigo em algum momento.

— Primeiro precisa saber, são poucas pessoas que sabem que o herdeiro do trono era uma menina. Então ao longo desses anos, muitos supostos "herdeiros" já foram testados, e falharam. — Hakon deu uma olhada rápida para os lados antes de continuar. — Seu poder vai ser a chave.

Nossas pernas nos moviam mais rápido agora. Com o ritmo acelerado e a concentração sem falhas, nosso plano de dias naquele cume não aconteceria. Isso porque parecíamos mais próximos do chão do que do topo naquela altura.

— E como isso funcionaria? Nem tenho acesso a ele ainda.

Uma elevação repleta de pedregulhos se revelou à nossa frente. Não foi um enorme desafio passar por isso, com as mãos firmes de Dalibur me auxiliando. Tentei ignorar o olhar fixo de Milo no lado oposto em que estávamos, tentei e convencer de que era apenas uma coincidência.

— Acesso tem. Só não sabe como ativá-la ainda. Isso pode levar tempo, ou acontecer assim que você por os pés no reino branco. Mas de qualquer maneira, precisa saber de algumas coisas básicas, pra quando acontecer.

Hakon parecia uma biblioteca humana de conhecimento. As informações jorravam de sua boca como as aguas constantes do rio, que viajavam sem parar. Minha mente absorvia cada regra, cada parte daquilo, da força que um dia eu teria.

— Lembre-se: dano mágico se trata de área. Se o inimigo erguer um escudo físico, nada acontece. Você carrega sua magia com energia vital, que aumenta conforme o uso. Significa que em uma batalha grande, o mais inteligente é deixar a magia grande pro final, flechas e espadas para quem usa barreiras mágicas, pois são facilmente penetradas por coisas físicas. Outra coisa, barreiras mágicas são feitas de energia mágica. Magia de convocação, como gelo e terra, podem ser impenetráveis.

— Porque se torna físico. — me lembrei da parede de gelo convocada por Axel no dia de minha fuga, e de como as flechas dos soldados pareciam inúteis.

— Isso. Mas também saiba que esse tipo de magia, também é mais difícil de mover do lugar.

Uma vez formada como objeto sólido, a parede de gelo permaneceria bloqueando os portões, até que fosse quebrada. Não desfeita ou moldada, mas partida ao meio. Uma magia mais forte, que nem seu criador poderia desfazê-la como o normal.

Passamos por um local mais íngreme, tomando cuidado para que nenhum de nós rolasse montanha abaixo. De novo. Quando terminamos de nos equilibrar de joelhos dobrados naquela inclinação, Milo se aproximou do resto de nós. Ainda emburrado como sempre, deu passos largos para nos ultrapassar, e no processo, não evitou de esbarrar de leve no meu ombro. Um choque tomou conta do local onde seu braço havia esbarrado, quase me fazendo perder o passo.

E esse coração acelerado princesa? É pra mim?

Senti vontade de gritar dentro de sua cabeça em resposta a audácia daquele ser humano. Senti quando um dos cantos de sua boca se repuxou pra cima, mas não me incomodei em reponder. Não só porque estava com medo de parecer uma completa maluca na frente de Dali e Hakon, mas também porque meu amigo continuou sua explicação.

— Existem outras coisas também, as obrigações legais. — chegamos a um ponto completamente reto da montanha, e como recompensa, aproveitamos o momento para nos sentar e beber um pouco de água. — Existe uma espécie de concelho no comando agora. Eles impedem que o povo seja exterminado pela fome, mas não tem muito poder além de administrativo.

Recostei minhas costas contra uma imensa rocha escura, sentindo o alívio de relaxar. Milo e Dalibur se sentaram um de costas para o outro, o primeiro rabiscando o chão com uma pedra enquanto o outro bebia de seu cantil. Hakon se sentou ao meu lado, e continuou:

— Isso significa que antes de erguer o império do nada, vai precisar de poder. Não magia, mas poder financeiro.

Até pra mim aquilo soava impossível. Reerguer um império tão saqueado das cinzas, um território explorado e quebrado, refazer cada pedaço da fortuna que um dia fora dos meus pais...

— Estamos falando de que exatamente?

Milo pegou o cantil do irmão e começou a beber, sua garganta se movendo tão rápido que mal ouvi as palavras seguintes de Hakon.

— De casamento oras.

Milo parou de beber. E por um segundo, tive certeza de que meu coração havia parado de bater.

A Herdeira brancaOnde histórias criam vida. Descubra agora