Um

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Eram cerca de onze da noite, mas eu me recusava a recuar. Foi assim que consegui me manter na fila da coroa por tanto tempo, a persistência em cada centímetro dos meus ossos. Ossos estes, que doíam completamente por todo o interior. Sempre tive medo de ver o olhar de decepção no rosto do meu pai, quando eu falhasse. Eu sabia que isso aconteceria, afinal eu era a única filha que ainda não havia despertado magia entre seus quatro filhos. Por isso era tão importante que eu permanecesse naquela maldita posição, enquanto meu maldito irmão Axel golpeava meu corpo com um bastão fino e longo de metal. Era um treino de resistência, o último do dia. Isso depois do treino de resistência a veneno, enforcamento, e luta corporal. Eu era a única princesa que se submetia a esse tipo de coisa, e não a conversas e chá como Elize. Minha irmã gêmea podia se distrair durante todo o dia, porque se fôssemos atacados ao anoitecer, seu poder latente estalaria pelos dedos, fazendo voar cada um dos invasores em um segundo. Mas eu? Eu teria que correr até a adaga mais próxima, e então me jogar sobre os inimigos, arriscando uma possível morte. E uma herdeira não podia morrer, nunca jamais.

— Isso aqui é um joelho tremendo?

Meu irmão joga a cabeça para trás e da uma gargalhada, antes de atirar o bastão contra meu joelho direito, trêmulo de frio e esforço. Engoli um urro de dor, e usei toda a vontade restante de mim, para controlar aquele maldito joelho.

— Não. — Respondi, a voz abafada pela mordida no lábio inferior, que me arrancou sangue. — Impressão sua.

Um pequeno sorriso se formou naquele rosto simétrico, que me fez agradecer silenciosamente por não ser Brank no lugar de Axel bem ali. Meu irmão mais velho tinha músculos maiores, e um senso de humor muito, mas muito menor. Mas ao menos seus treinos duravam menos, porque acabavam com meu desmaio, ou um nariz quebrado. Seis narizes quebrados pra ser mais precisa.

— Vai ao baile amanhã? Ouvi dizer que papai convidou estrangeiros.

Ergui os olhos para o cabelo louro bagunçado de Axel, no exato momento em que ele passava uma mão por ele. Aquele garoto era o tipo de príncipe perfeito, amava bailes e eventos formais, dançava com todas as garotas que davam gritinhos diante de sua presença, estava bem alinhado e polido todo o tempo. Meu outro irmão não ficava muito atrás, com a postura alinhada e perfeita só não sabia conversar com outro ser humano por mais de dois segundos inteiros. Elize era a mesma coisa, cachos lindos e olhos claros, a beleza ofuscante que apagava qualquer um ao seu redor. Não que eu precisasse de muita ajuda pra desaparecer, com a pele clara e o cabelo em um tom pálido de castanho, a aparência fraca apesar dos treinos. Era a parte de mim que eu menos entendia.

— Não sei. Se algum vestido caber em mim eu vou.

Minhas pernas gritavam, mas eu trinquei os dentes para não fazer o mesmo. Meu irmão me rodeava com o bastão, cutucando, batendo, provocando. Com aquele tipo de treino, eu deveria estar muito mais forte, mais saudável, mais poderosa. Tinha algo de errado comigo, e todos ali sabiam disso.

— Não entendo como você emagrece tanto comendo o que come. E ainda com os treinos... pode levantar.

O relógio deu a primeira badalada assim que terminei de me erguer, provando minha péssima noção de tempo. Ergui os braços para me espreguiçar, enquanto meu irmão largava o bastão e passava uma mão larga para trás das minhas costas. Axel costumava fazer isso, me ajudar a andar depois de quase me exaurir com sua força física. Senti uma lufada de magia no tornozelo esquerdo, que parecia mais frágil que o normal. Era a forma dele de demonstrar que se preocupava, apesar da quantidade de sangue que me arrancava.

— Acho que preciso tomar mais sol.

Outra coisa estranha. O sol do sul, muito mais quente que o do norte, queimava a pele de todos ali. Toda a minha família possuía aquele aspecto dourado belo, que os fazia brilhar de certos ângulos. Mas eu? Eu parecia um palmito mal temperado sempre.

— Não. Precisa de magia.

Já estávamos na porta de saída do salão de treino quando Brank apareceu das sombras, o cabelo dourado como ouro escuro nos recebendo antes do rosto rígido ser iluminado pelas tochas. Ele era pelo menos vinte centímetros mais alto que a maioria dos homens altos naquele reino, o que resultava em pescoços doendo durante uma conversa. Eu odiava aquele assunto, porque na cabeça dele, eu não despertava magia porque não queria, quando na verdade sempre havia sido meu maior sonho.

— Seu corpo não foi feito pra definhar como humanos, e é isso que você faz quando se recusa a abrir-se para a magia te curar.

Axel respirou fundo, sabia onde aquela conversa ia dar. Eu amava Axel, daria minha vida pela minha irmã, mas Brank... eu sentia que algo na forma como ele me olhava não estava certo. Alguma loucura oculta por baixo do ciano dos seus olhos, ou a maneira como ele franzia a testa para cada movimento em falso meu. As vezes eu tentava me convencer de que era apenas seu lado perfeccionista tentando retirar defeitos dali. Mas e quando ele decidir que o defeito era eu?

— Estou cansada. — declarei. — Até amanhã.

Dei dois passos para longe de Axel, me distanciando o suficiente para que Brank entendesse minha intenção. Mas sua mão se esticou até meu cotovelo, e uma descarga de sombras simplesmente me paralisou no lugar. Aquele era seu poder: frio, fluido e sólido ao mesmo tempo, completamente sombrio e perverso para aqueles que viam de fora, e totalmente pior para quem sobrevivia ao ver de perto. Eu era a única que sentira aquilo e sobrevivera para contar a história. Muitas vezes na verdade.

— Não dê as costas para mim garota.

Ele não me chamava de irmã nunca. Nem pelo nome, muito menos princesa, ou algo assim. Era sempre "garota", "menina" ou algo pior. Eu odiava completamente aquilo, mas a forma como suas sombras corriam pelo meu corpo, como se pudessem penetrar fundo na minha alma, devorar cada gota de sangue ali... me virei de volta para ele, sentindo um calafrio pela espinha.

— Eu digo quando você vai embora.

Um nó se formou na minha garganta, diante daquela intimidação. Eu odiava aquilo, e todas as situações em que ele se mostrava superior daquele jeito. Mas o que mais eu poderia fazer? O rei o puniria por me matar, mas daí já seria tarde demais. Eu não podia nem sequer me defender daquele cretino naquele corpo inútil.

— Eu digo chega.

Axel se reaproximou de mim, e usou toda a força para arrancar meu cotovelo das mãos do irmão, o mais rápido possível. E sem olhar para trás, ele me arrastou pelo corredor mal iluminado, até que eu entrasse em meu quarto e pudesse chorar livremente.

A Herdeira brancaOnde histórias criam vida. Descubra agora