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Abro os olhos de uma vez só como quem acorda de um sono agitado, erguendo meu tronco ao me sentar e me arrependendo de imediato quando sinto a pressão dentro do meu crânio e a tontura repentina, como se meu corpo me repreendesse por ter levantado tão depressa. Levo uma mão até a cabeça e massageio as têmporas enquanto meus olhos se acostumam novamente com a claridade.

- Vá devagar. - A voz ao meu lado faz com que eu pare de imediato onde estou, me virando devagar para seu dono.

- O que aconteceu? Onde está Lina? - Pergunto rápido para o Comandante, que ergue uma mão em um sinal para que eu me acalme.

- Sua irmã está bem, ninguém se machucou. Você só ficou muito tempo sem ar quando o titã te pegou. - Erwin responde e aponta para baixo. - Mas o problema já foi resolvido.

É somente nesse momento que percebo que estou em um galho alto da árvore onde eu havia me apoiado antes de avançar contra o titã. Francamente, no que eu estava pensando? Volto a massagear as têmporas doloridas enquanto me pergunto que tipo de merda tenho na cabeça. Se até o melhor esquadrão do Reconhecimento estava fugindo, por que eu, que treinei por três dias, corri para cima daquele titã? Sinto novamente minhas entranhas se revirarem de vergonha.

- Me desculpe. - As palavras saem da minha garganta devagar e de forma dolorosa. Ergo os olhos até os de Erwin e me esforço para manter o contato com eles. - E obrigada, Comandante.

- Você não atrapalhou. - Erwin diz e o olho desconfiada. - Não muito. Mas está tudo bem agora, só precisa descansar mais alguns minutos.

Apenas assento para ele e permaneço em silêncio, me ajeitando melhor sobre o galho, escorando as costas na árvore e respirando fundo, olhando para sua copa, por onde os raios de sol penetram e tocam meu rosto gentilmente, assim como a brisa que sopra algumas folhas para o meu cabelo. Nunca tive muito contato com a natureza além do jardim da casa onde cresci. Entretanto me lembro de adorar a sensação da terra úmida em meus pés e o cheiro das roseiras que enfeitavam o caminho de pedras até o coreto. É como se eu pudesse me sentir lá, sentada sobre a estrutura de madeira com um livro, mas a voz de Erwin me tira daquele devaneio, que foi reduzido a apenas uma memória longínqua.

- Amarie. Há algo que preciso perguntar. - Ele limpa a garganta e se abaixa na minha frente. - Acredito que sabia do que se trata.

- Sim, eu sei. - Suspiro, abrindo os olhos para ele. Não há para onde correr e duvido que vou conseguir esconder muito mais do meu passado dessas pessoas. - Ethan é um amigo, uma das pessoas mais importantes para mim também.

"Eu cometi um erro, Comandante, e a consequência disso foi a morte de uma criança. O irmão de Ethan. Foi antes de eu descobrir que sou eldiana, quando meu ego era maior do que qualquer outra coisa. Eu me recusei a ajudar o menino e Angela não conseguiu levar ele sozinha até o consultório a tempo. Ethan me defendeu e me acolheu como uma igual quando precisei." Faço uma pausa e solto um longo suspiro, segurando as lágrimas que ameaçam subir até meus olhos. "Mas eu nunca tive coragem de contar a ele o que eu fiz, que foi culpa minha. Não somente o seu irmão mas... Tantas outras pessoas."

Erwin me encara em silêncio, espantado pelas minhas palavras. As sobrancelhas grossas do loiro estão levemente arqueadas em seu rosto, que relaxa um pouco logo em seguida. O Comandante suspira algumas vezes e olha para os lados como se buscasse as palavras certas, até que ele volta a me encarar, mas dessa vez, há algo diferente em seus olhos.

- Eu entendo o que é isso. Esse peso, Amarie. Eu sinto como se estivesse no topo de uma pilha de cadáveres dos meus companheiros. - Ele faz uma pausa. - Eu os mandei para a morte várias vezes somente pela ambição de realizar um sonho de infância. Descobri a verdade sobre os titãs e agora eu sou até um deles... Mas a que preço? Não é como se eu soubesse o que deveria fazer agora.

Engulo a seco diante de suas palavras, tentando pensar em qualquer coisa que possa lhe dizer enquanto estalo os dedos das mãos, nervosa. Mas é o Comandante quem continua sua fala:

- E mesmo assim eu estou aqui, tentando achar algum caminho viável. - Ele respira fundo. - Não temos como voltar atrás e pedidos de desculpa não vão amenizar a dor de ninguém. Você cometeu erros, Amarie. Conviva com eles. Você tem a chance de fazer algo pelas pessoas agora, pense nisso.

O homem não me dá tempo de ao menos formular uma resposta e se levanta, voltando para o solo em seguida. As palavras de Erwin me acertam em cheio e parecem voar em círculos ao redor da minha cabeça enquanto me levanto devagar, recobrando meu equilíbrio aos poucos. Confiro o dispositivo de manobras e também me apresso em chegar até o chão, onde o corpo do titã evapora devagar e o restante do Esquadrão se prepara para partir novamente. Assim que meus pés tocam a grama, sinto os braços finos de Lina ao redor da minha cintura e retribui seu abraço, deixando um breve carinho no topo de sua cabeça antes de nos separarmos.

- Você está bem mesmo? - Ela pergunta, preocupada.

- Estou sim, meu bem. - Respondo forçando um sorriso para a menina que parece se dar por satisfeita. - Não se preocupe comigo.

- Sempre vou me preocupar, Marie. - Ela diz e em seguida me acerta uma cotovelada nas costelas. - O que aconteceu lá em cima?

Sinto meu rosto corar diante da expressão no rosto da menina.

- Nada. O Comandante e eu apenas tivemos uma conversa. - Respondo e, embora seja verdade, as palavras dele continuam reverberando dentro de mim pelas minhas entranhas. Aquilo definitivamente não foi apenas uma conversa como outra qualquer que já tenhamos tido.

O equipamento é checado e partimos novamente na mesma formação de antes. Passamos por Shiganshina no início da tarde e as lembranças do dia em que havia sido capturada ali voltaram à tona diante do cenário de destruição dentro da cidade. Reconheço boa parte do caminho da Muralha Maria em diante, sentindo um comichão estranho no pé da barriga ao me lembrar da despedida de Ethan a medida que nos aproximamos do porto.

Então, sob o brilho alaranjado do sol quase poente, as dunas começam a aparecer, a areia entrando em meus olhos algumas vezes e o aroma salgado que a brisa marítima traz até nós quando já estamos perto o suficiente para escutar as ondas quebrando na praia logo adiante. O grupo diminui a velocidade e a formação é desfeita enquanto subimos por uma duna alta, ao lado de um enorme paredão de concreto que, infelizmente, sei para que serve.

Uma onda de suspiros e exclamações maravilhadas passa pelo ambiente quando a imensidão azul se revela, refletindo o brilho dos raios de sol que ainda estavam no céu. Os observo com atenção enquanto uns correm para a água, deixando as botas no meio do caminho largadas na areia. As capas caindo uma por uma junto das jaquetas e as risadas que vêm de mais a frente. Lina desmonta assim como eu e segue de imediato para a água também, seguindo a animação de Sasha e Jean.

Entretanto, uma forte onda de melancolia me atinge quando meus olhos encontram a figura imóvel do Comandante a alguns metros de mim. Ele tem os punhos fechados ao lado do corpo e o maxilar cerrado, apesar de que a expressão em seu rosto cintila de admiração pelo que vê em sua frente. Imagino por um instante como deve ser crescer sem conhecer o mundo em que nasceu, privado de prazeres tão simples como sentir a água do mar e a areia morna da praia sob seus pés.

Penso o quão injusto isso é, e em como não está ao nosso alcance mudar a rivalidade enraizada na mente de eldianos e marleyanos em consequência de atos que aconteceram séculos atrás. Entretanto, penso novamente no que Erwin havia me dito e, diante da expressão que vejo em seu rosto mesclada à raiva que parece emanar do restante do seu corpo, penso que não seria de todo ruim abraçar aquela realidade, e fazer algo pelas pessoas, de fato.

Lionheart I Erwin SmithOnde as histórias ganham vida. Descobre agora