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Sinto meu corpo relaxar quando me sento sobre o banco de madeira e sinto o vapor da bebida quente tocar o meu rosto, ainda dolorido assim como minhas pernas, que estico sobre o caixote de madeira na minha frente. A fogueira mais à frente crepita enquanto as chamas baixas dançam ao redor da lenha, que já está quase no fim. Já passam das onze da noite, o céu limpo me permite enxergar os inúmeros pontos brilhantes que o enfeitam e suspiro enquanto admiro as formas e aglomerados que formam.

Olivia uma vez havia me dito que as pessoas que morriam viravam estrelas, que ficavam no céu para sempre, nos iluminando e assistindo de lá de cima. Aquilo nunca fez sentido para mim mesmo no dia em que ela me contou, no auge dos meus sete anos. Penso que deve ser no mínimo entediante ser um astro como aquele, condenado a ser apenas um ponto luminoso no céu pela eternidade. Prefiro não pensar sobre o que acontece com as pessoas que morrem, mas naquele instante desejo que o homem daquela manhã estivesse em qualquer lugar melhor. A notícia de sua morte vinda da enfermeira que me ajudara não me surpreendeu, dado o estado de saúde dele, mas me deixou abalada. Talvez ele estivesse com a esposa e o filho, afinal.

- Imaginei que fosse estar aqui ainda. - Ouço uma voz masculina se aproximar e ergo a cabeça para encarar Ethan. - Não consegue dormir?

- Na verdade, eu não quero dormir. - Suspiro, tirando os pés de cima do caixote para que ele se sente sobre ele. - Sempre tenho pesadelos.

- Compreensível. - Ele dá de ombros, em seguida esticando a mão para a caneca de metal que seguro em mãos, pedindo permissão para pegá-la e eu a entrego. - Você não tomou nada?

- Eu detesto café. - Respondo enquanto ele toma um pouco. - Mas gosto do cheiro.

- Maluca. - Ele resmunga enquanto termina de tomar seu café em silêncio.

Apenas observo Ethan com atenção. Mesmo tendo se passado apenas alguns meses, ele não se parecia com o garoto ferido no consultório de Angela naquela noite, com o rosto cortado e fedendo a bebida. O corte de cabelo bem feito e o uniforme o deixam razoavelmente bonito. Até mesmo a cicatriz em sua bochecha parece ter sido feita sob medida como um detalhe crucial para construir sua imagem.

Ethan havia se tornado um amigo, afinal. Era conhecido de Angela há anos também, filho de uma falecida amiga da mulher mais velha. Sempre me espantei em nunca ter o visto antes, uma vez que vivia na casa de Angela desde quando ela virou minha professora. Ele pigarreia e volto para a realidade, balançando a cabeça e só então percebendo que estou o encarando. Sinto meu rosto arder e agradeço pela luz alaranjada que vinha da fogueira mais adiante.

- Está tudo bem? - Ele pergunta. - Angela me contou o que aconteceu hoje. Não me leve a mal, mas... Queria ter visto ela te batendo.

- Até você? - Pergunto, indignada.

- Você é péssima, Amarie. Aceite. - Ele ergue uma sobrancelha, fixando os olhos verdes em mim logo depois. - Mas eu falo sério, você está bem?

- Estou, eu acho. Fiquei um pouco baqueada mas foi bom abrir um pouco os olhos. Só reclamar não ajuda em nada mesmo. - Dou de ombros, me endireitando em meu assento. - Disse a Angela que não vou mais negar ajuda a ninguém e ela me fez prometer. Mas eu tenho medo porque eu não consigo... Cuidar deles.

- Como assim? - O moreno franze o cenho, parecendo interessado.

- Foi a primeira coisa que ela me ensinou, eu não deveria ter mais de onze anos. Um cavalo me derrubou, me machuquei bastante. Ela foi até a minha casa todos os dias, mesmo que eu não precisasse dela. Nós conversávamos e à vezes Angela me levava alguns doces. - Sorri fraco, as lembranças são acalentadoras. - Perguntei um dia o motivo de ela fazer aquilo e a resposta foi: "Um médico tem que cuidar de seus pacientes como cuidaria de alguém que ama muito."

Ethan me observa em silêncio.

- Não consigo sentir isso por eles... Por nós... Você entendeu. - Suspiro, ouvindo uma risada fraca vindo dele.

- É tão inacreditável ouvir essas coisas que ás vezes eu gosto de pensar que você está contando uma piada. - Sua voz sai baixa.

- Me desculpe.

- Não se desculpe, você só está sendo sincera. - Ele apoia os cotovelos sobre os joelhos, se aproximando. Um sorriso triste curva os cantos de sua boca e ele suspira. - Meu irmão teria feito você mudar de ideia.

Apenas sorrio de volta e assento com a cabeça, ignorando o desconforto imediato em meu estômago. Ethan nunca soube sobre aquele dia, que eu havia deixado o menino apedrejado e machucado para trás com Angela, o rapaz que sorria na minha frente não tem a menor ideia de que a culpada pela saudade que deve estar sentindo nesse momento, sou eu. Ele foi um dos primeiros a me acolher quando cheguei ao quartel de Liberio e me defendeu algumas vezes. Toda a coragem que reuni para lhe contar a verdade desapareceu diante de sua gentileza.

- Não tenho certeza. O meu pai, digo, Robert, sempre foi bastante rígido comigo. - Digo, me odiando por ainda insistir em o chamar daquele jeito. - Olivia era bastante severa na maior parte do tempo mas sempre foi carinhosa comigo.

- Mas Angela me disse que vocês eram próximos. - Ethan contesta.

- E éramos, ele passou a me tratar melhor quando percebeu que eu acreditava nas mesmas coisas que ele. - Sorrio fraco, tocando a cicatriz que havia quase desaparecido de minha bochecha. - Mas acredite, ele não gostava que eu questionasse o ódio aos eldianos. Todas as vezes em que tentei ajudar um quando era criança, fui repreendida. Então passei a acreditar que eles eram os vilões de verdade.

- Isso é horrível. - Ethan diz baixo, respirando fundo em seguida. - Nada anula as coisas que você disse e fez, Amarie... Mas talvez, caso você se permita enxergar as pessoas além de braçadeiras, irá se surpreender.

Ethan murmura um "boa noite" e caminha para longe, levando minha caneca de metal logo em seguida. Entre o pensamentos acerca de suas palavras, faço uma nota mental para não esquecer de pegar o objeto de volta no dia seguinte. Era estranho falar aquelas coisas para alguém, afinal, nunca fui permitida por Robert a contar sobre aquilo para alguém, quem quer que fosse. Um comerciante influente como era, seria horrível para ele que descobrissem o que fazia com a filha.

Me levanto devagar, sentindo meu corpo doer como se meus músculos estivessem atrofiados. Estou prestes a caminhar em direção à tenda onde durmo quando ouço alguns passos apressados atrás de mim sobre o chão de terra batida e me viro a tempo de ver a figura alta se aproximar. Franzi o cenho, estranhando a presença da mulher extremamente alta na minha frente. Yelena afasta a franja loira dos olhos, colocando as mãos nos bolsos da calça escura em seguida.

- Eu... Posso ajudar? - Pergunto devagar diante de seu silêncio.

- Você vai voltar para Liberio amanhã. - Ela diz, e continua antes que eu possa contestar. - Zeke quer vê-la.

- Mas foi ele quem sugeriu que eu viesse para cá. - Argumento, confusa. - Isso não faz sentido nenhum, eu deveria ficar dois anos aqui.

- Questione ele quando o vir, então. - Ela revira os olhos. - É algo relacionado com a Ilha Paradis, mas não é o que está pensando. - Ela ergue uma das mãos quando arregalo os olhos para ela. - Parece que ele precisa de ajuda com uma missão específica.

- Eu não sou um soldado! - Insisto. - E ele é a porra de um titã, pode se curar sozinho. Em que eu seria útil?

- Eu já disse para perguntar a ele. Assunto encerrado.

Yelena revira os olhos impaciente e volta a caminhar a passos rápidos de onde veio, desaparecendo no acampamento logo em seguida. Solto o ar dos pulmões com força quando entro na tenda, caçando no escuro o caminho até a cama dobrável deitando sobre ela quando finalmente a encontro, resmungando comigo mesma.

- Aquele macaco idiota.

Parece que eu iria para o Paraíso de qualquer jeito, afinal.

Lionheart I Erwin SmithOnde as histórias ganham vida. Descobre agora