O início de tudo (parte 1)

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Estava uma completa escuridão. Não se ouvia nada além de uma respiração curta. Por fim uma pequena luz foi vista, tomando o contorno de um homem. Ele pegou um livro e entregou a outro homem diante de si, e disse: "Tome. Isto pertence a você".

A visão de foco do receptor elevou-se para o rosto do companheiro, mas apenas restava um breu iluminado ao invés de uma face, desfazendo-se em fragmentos luminosos, impedindo-o de mirá-lo.

Uma luz intensa tomou conta do cenário. 

Cílios negros se abriram com lentidão, revelando profundas esferas azuladas que observava os móveis do cômodo de maneira perplexa, vendo-os ganhar a forma dos devidos objetos.

O que foi isso? Um sonho?

O menino bocejou e sentou na cama. Retirou os fios do rosto e assistiu o quarto que se encontrava, estranhando o sonho que tivera.

Desde que a mãe havia lhe contado a história que o livro que tinha era uma herança de família, sonhos estranhos como esse continuavam a aparecer. Ele não poderia reclamar já que sempre esteve curioso sobre aquele livro velho que até então não entendia o motivo de seus pais nunca o jogarem fora. Era sempre a mesma resposta da mãe: Isso é um presente de família, e presentes se guardam.

O jovem suspirou ao recordar desses amargos dias em que sua posição de hierarquia era comparada com a relação entre os escravos e reis, e ele era o governado, não tendo como contrapor a fala da poderosa mulher da casa.

Sem querer permanecer inerte nos seus próprios pensamentos, levantou-se da cama para se aprontar mais uma vez para a escola.

Após longas tarefas matinais, fez o que costumava fazer: se observar no espelho. O corpo uniformizado recebia toques nos ombros pelos cinzentos cachos ondulados, estes que eram o símbolo de todos os seus problemas de infância - que ainda permaneciam.

— Mãe, estou indo.

— Já vai? — a mulher examinou-lhe a roupa, tendo a certeza de que o filho não tinha esquecido de nada. — E o café?

— Não posso comer. Está tarde.

— Acordou atrasado de novo, não é? 

Mael concordou lentamente, envergonhado com a própria falta de responsabilidade. As noites estavam ficando cada vez mais curtas por causa dos sonhos, mas mesmo que tentasse descansar deles, sempre apareciam depois.

Era demasiado cansativo.

A mãe do jovem deu um longo suspiro, já desistindo de fazê-lo acordar mais cedo. Aproximou-se do filho e selou um terno beijo na testa dele, dizendo:

— Vá com cuidado.

— Obrigado, mãe. Se cuide.

O rapaz abriu a porta de madeira e a atravessou. Ao sair de casa, pegou a bicicleta apoiada na parede e andou lentamente em direção a pracinha próxima. Não estava animado para ir à escola após as últimas notícias recebidas.

— Mael?

O garoto olhou para trás ao ser chamado, avistando um jovem ruivo conhecido que sempre o acompanhava quando criança. A personificação dos seus momentos mais felizes e infelizes.

— Atrasado como sempre - disse o ruivo, revelando covinhas no sutil riso. — Esta é a minha namorada. Vocês já se conhecem, certo?

— Sim Luca, éramos da mesma creche. Tudo bom, Maya?

— Sim. Quanto tempo não te vejo — disse a morena, olhando o menino de cima a baixo com um sorriso. — Está lindo.

O rapaz de fios cinzentos desviou o olhar para um lado qualquer da praça, focando na beleza do chão de pedras em comparação a cadeira, sem saber o que falar. 

Luca, desconcertado, mirou confuso para o companheiro e a namorada, refletindo sua tensão até se pronunciar:

— É melhor não dizer sobre isso, amor.

— Por que? - perguntou Maya. — Eu fiz alguma coisa errada?

— O Mael... não se sente bem sobre a aparência dele — explicou Luca. — Teve muitos problemas quando era criança.

— Problemas que não eram verdades - Mael acrescentou.

— Então ainda não descobriram nada? — questionou Luca.

— O que há para descobrir? Não tenho uma doença genética. Você sabe disso.

Luca ficou em silêncio.

— Sempre ficamos juntos e você nunca reclamou de nada. Acha mesmo que tenho uma?

— Eu não disse isso.

— Mas é o que parece.

— Soube que vocês estudavam juntos - interviu a sorridente Maya, distraindo os jovens. — Sinto muito por ter roubado ele de você, Mael, mas eu queria tanto que ele estudasse comigo.

— Tudo bem, Maya. Ele iria ficar com você de qualquer forma, certo? 

Luca olhou para baixo, incomodado com aquela situação.

— Tenho que ir agora. Se divirtam.

Mael sentou na bicicleta e pedalou em direção à escola o mais rápido que podia, tentando abandonar a fatídica cena atrás de si. Diante de seus olhos a paisagem mudava à medida que ultrapassava as casas, sendo ocupado pelas árvores e asfaltos. O aroma do solo úmido emanava em todas as manhãs, relaxando o próprio espírito que ainda preferia estar deitado em sua cama.

Ao finalmente chegar ao colégio, guardou a bicicleta entre as grades e subiu as escadarias, rezando para não tropeçar novamente nos meus próprios pés. Não gostaria de dar outro motivo para que rissem de si.

Respirou fundo ao ver a porta da sala fechada, preparando-se psicologicamente de olhos fechados, torcendo para que fosse o professor bonzinho. Quando finalmente arranjou coragem, bateu na porta e a abriu, dizendo cautelosamente:

— Com licença, posso entrar?

— Claro, Mael.

Ele adentrou a sala, não desejando transparecer o alívio que sentia enquanto andava lentamente para a carteira destinada, ajeitando-se na mesma. Sentia os olhos dos colegas fixos em si, novamente fazendo a situação espalhar o desconfortável sentimento por seu corpo. Apesar disso ter se tornado algo diário, se atrasar atraía ainda mais atenção, então, a única saída que tinha era ignorar os olhares alheios, e assim fez, abaixando a cabeça.

A aula continuou, atraindo a atenção do jovem ao falar sobre a sua principal companhia em momentos de solidão: um livro. Achava interessante ouvir sobre eles, ainda mais sabendo que tinha um antigo esperando-lhe em casa. Mesmo com o soar do sinal ter se repetido, sua mente ainda se mantinha na aula de literatura. Nunca tinha chegado a se perguntar a respeito da origem das lendas, e conversar com alguém a respeito estava fora de cogitação. Se fizesse isso, dessa vez sim daria um real motivo para ser estranho, e o que tinha já tinha era o suficiente.

No recreio ainda se questionava, imaginando o livro de herança familiar da qual nunca abriu. Ainda que seus pais dissessem que estava velho demais para ler, a curiosidade não lhe largava do peito. Queria saber quais eram as fascinantes histórias que o artefato guardava.

— Olha só quem está aqui, senão é o Mael.

O rapaz olhou para trás, deparando-se com o trio de garotos conhecidos. Eram os seus  colegas de sala desde a creche. A origem das fofocas.

— O que vocês querem? — perguntou Mael, tentando não demonstrar medo.

— Calma aí. Só queremos conversar um pouquinho.

A Pedra dos SonhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora