🌊 uma vírgula no tempo 🌊

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O mar
Quando quebra na praia
É bonito

Cantava Dorival Caymmi, no rádio. Às vesperas do acaso, precedendo os trilhos rasos, os claros vagões. Entre uma onda e outra, afogo-me em poesias e nelas, sereias encontro e com elas eu canto.

— Cecília?! —, gritou alguém. Mas quando viro-me para atender, nada além de praias desertas eu vejo.

A ver navios partidos, tesouros perdidos. Barba Ruiva convoca-me para sua inusitada tripulação. Os medos e os modos, os modos e os casos.

— No que você estava pensando? —, perguntou servindo-me um pouco de suco fresco.

— É de que o suco, vovó? —, eu já sabia que era de laranja.

— Abacaxi. —, miras me em miragens que te prendes. — No que essa cabecinha leve tanto pensa? Hein? —, em suas mãos antigas, carícias perdidas.

— A senhora se engana achando que há leveza em mim... Tudo é profundo e denso. Sou água abissal. Penso e reflito, regurgito e depois vomito. É desgastante. É desesperador. Parece que essa viagem não tem fim. E todas as vezes que tento em algum porto parar eu na verdade acabo me desviando, mergulhando em mares poluídos, levada pelas ondas. Entre uma onda e outra, deixo-me e torno-me apenas fuligem. É tudo tão desgastante e eu... Eu não aguento mais ser tão sozinha, vovó... —, desmanchei em lágrimas, hasta que me desidrate.

A minha avó me abraçou concedendo-me o calor do seu corpo.

— Nada se perdeu. As coisas só estão refeitas. Reconstrua-se pra te encontrar. Encare como um recomeço. Você tem o direito de se ouvir.

— Não me sinto livre. Eu quero voar. Mas eu estou presa num marasmo. Procurando no caos o cais. —, gritos confusos, sussurros perturbadores.

— Você quer sair daqui, é isso? —, seus traços velhos, seus braços ternos. O peito que ampara, o toque que acolhe.

— Mas eu quero ir sozinha. —, vista que visa o horizonte, para além do céu rosado e poente encantado.

— Quer ir pra casa do seu avô em Minas? —, seus dedos pelos meus cabelos escorrem. Nos seus beijos acalento, nas suas palavras, alento.

— Eu quero. —, foges e vais para longe de onde não posso te ver.

— Você pode passar um tempo lá, meu amor. —, em sua voz, aconchego. — Mas eu tenho medo que esteja sozinha.

— Eu estou sozinha. —, um suspiro de morte eminente.

— Jamais. —, protestos insatisfeitos. — enquanto eu estiver viva, eu vou vou estar por você. Independente se faça frio ou chuva, se no deserto ou na floresta, se caia neve ou faça sol, se nublas o tempo o sorriam as praias, eu serei lâmpada para o teus pés e luz para teus caminhos. Nunca duvide disso.

Eu a olho e vejo tanta bondade e beleza. Eu queria ser como ela. Minha avó. Minha querida avó e seus olhos repletos de água. Como eu amo. Como eu a quero. Como a necessito. Abraço-a terna.

— Eu te amo, minha filha. Eu te amo. —, suas palavras beijam os meus ouvidos e apacentam meu coração.

— Eu também te amo, minha querida avó.

Um traço impressionista, uma impressão de Sorolla. As cortinas seduzidas pela cantoria dos passarinhos. Os dias que se foram com ventania de outubro. O sol colorindo entre as paredes, expressando sentimentos. As vigas altas, o empurrar do vento e os sonhos aflitos.

— Por que nunca em contou sobre a minha mãe?

— Por que o que se foi, se foi. Falar sobre o passado não ajustará em nada o futuro. E que se pode fazer para mudar o que o tempo já concretizou? Somos nada parente o senhor do destino. Canta Caetano, tempo, tempo, tempo és um senhor tão bonito, compositor de destinos...

— Está fora de ordem vovó. —, disse sorrindo.

— E foi assim desse jeito que te chegaram as falácias sobre a sua mãe. Cada qual tem se jeito de ver uma história. Filtros, perspectivas. A verdade da Rosa não é a mesma da Orquídea, assim como o que a do Aguapé não a mesma dos Nenúfares. Não tire conclusões precipitadas e se no fim tudo for isso mesmo, esqueça, não precisa acrescentar coisas ruins pra sua história. Ela é individual e por ser, é única independente do que já aconteceu.

Reconheço meus complexos refletidos no espelho d'água
Tu destino
Catapultas as vírgulas
Exclamas as interrogações
Reparo-me em fotografias antigas
Meu rosto esboça os velhos costumes
Sinto-me nas curvas da história

— Você conheceu a Alice, Vovó? —, voando as palavras estão pelo céu emaranhado de nuvens, resplandecendo-se. — Eu gostaria de perguntar isso ao tio Mário, mas não tenho essa audácia.

— Eu a vi algum par de vezes. —, cerras o cenho, franzes a sombrancelha, devias a visão.

— Como ela era? —, pergunto.

— Carismática sem sombra de dúvidas. Florida, gostava de ler também, como você. Era agradável, mas também era falante. Mas não era uma falante descompensada, era de fato muito bem educada.

Tentei guardar o mar numa garrafa
Transbordou
Tatuei na superfície da pele as conchas
E os outros vultos
Escuros
Tentei buscar em seus olhos
Submersos
três versos
Reversos
Os ventos ventando
Os sonhos gritando
E liberto então o mar

— Quando a Sophia era criança... —, falou tia Rosa. — ... Ela pegava aqueles negocinhos... —, pensou um pouquinho. — Como é que é, mãe?

— O que? —, mais confusa ainda vovó perguntou.

— Aqueles um que fica andando na orla da praia. —, mãos na cintura, careta dissimulada, cenho frizado.

— Caranguejo? É... Siri? —, ela parecia realmente esquecida. Ia dizendo esparolada várias alternativas, se esforçando pra que alguma fosse a certa. — Marisco?

— Éeeee! —, satisfação estampada no seu rosto redondinho. — Ela pegava estes mariscos do meio do amontoado de areia, por entre as crostas, perdidos zamzando por aí e os engolia duma vez, com areia e tudo só igual que era uma garça. Vê se pode, mãe?!

Gargalhamos todos.

— Não sei como não pegava uma espécie rara de verme. —, debochou vovó.

— Deve ter pegado, por isso hoje em dia é desee jeito aí? —, tio Mário falou com uma cara implicante.

— Que jeito, pai? —, Sophia fingiu que estava brava. — Que jeito? Aff...

— Já se imaginou comendo mariscos salpicados de areia, Cecília? —, perguntou tio Mário com uma cara sacana.

Essa era a minha família. Eu os amava e os queria, mas precisar de um tempo pra mim não significava que eu queria deles fugir. Eu não posso me recriminar por querer apenas um tempo. Um pouco de tempo, não todos os tempos, apenas um pedaço do tempo. Um tempo pra mim, um tempo que me abraça, um tempo pra abraçar a mim mesma nos braços do tempo, descansar a alma.

OCEANO EM SEUS OLHOSHikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin