Ritual da Lua Sangrenta

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Despertei com as vozes que agora estavam mais altas, mas continuávamos apenas Celeste e eu na sala, e ela estava adormecida.

Devagar para que ela não acordasse me virei, queria um momento só meu para avaliar o rosto tão conhecido que passou a ser estranho para mim.

As feições de menina tinham se moldado, amadurecido, mas continuava sendo a Celeste que eu me lembrava, as poucas marcas visíveis não interferiam em nada e fiquei aliviada por saber que papai não tinha conseguido destruir a beleza que ela tanto tinha amaldiçoado.

Toquei em meu próprio rosto, reavaliando boa parte de meus anos com a ponta dos dedos.

As maçãs do rosto, os olhos escuros característicos, os lábios que Celeste nunca cansava de elogiar e que eu não via nada demais, pois achava os dela mais bonitos, tudo estava aqui, e ainda assim, eu estava diferente.

Ela se mexeu ainda entregue ao sono e sua cabeça pendeu para meu ombro, permiti que assim ficasse, agradeci esse momento de proximidade que somente eu deleitaria.

Brinquei com uma mecha de seu cabelo sedoso e um sentimento de saudade me tomou, aqui nesse silêncio, nessa sala escura era como se tivéssemos voltado a nossa infância, quando nada havia senão nós duas, de mãos dadas, caçando pelo jardim da vovó um cantinho para criarmos nossos mundos de fantasia, escondidas dos olhares duros de papai e dos ansiosos da mamãe.

Mal sabíamos que nossa liberdade estava com os dias contatos, que o Jardim do rei na época em vigorosa reforma seria nosso lugar de trabalho e nossa destruição, mas agora, segurando sua mão eu me vi novamente pequena, buscando nosso cantinho para começar outro mundo fantástico, mas dessa vez sem papai e mamãe e seus montes de problema para nos afetar, porque nós duas estávamos livres.

Só eu e Celeste, ela com seu mundo fantástico já descoberto segurando minha mão para me ajudar a encontrar o meu.

Como se pensasse o mesmo ela abriu os olhos e me ofereceu um sorriso ansioso, apertou minha mão com uma pressão que dizia muito, apertei de volta e ficamos com as cabeças juntas, cada uma perdida em seus próprios pensamentos.

Nunca fomos de falar muito, antes falar era como entregar nossos esconderijos, então o silêncio passou a ser apreciado como um terceiro amigo.

Tiago sempre foi nosso querido caçula, mas papai não permitia que interagíssemos com ele. Éramos inferiores, aprendemos isso muito cedo, e assim crescemos obedientes e conscientes de que ser menina não era algo bom em uma sociedade patriarcal.

Eu ainda não conseguia me imaginar retornando ao reino Humanis, mas desde que Padre Moura me contou as novidades eu tinha essa vontade de visitar não o reino de meu pai, mas o que meu irmão e sua esposa estavam construindo com ajuda das outras raças, mas não agora, um dia, quem sabe.

Minha atenção despertou quando ouvi o ranger de madeira antiga, logo uma moça surgiu e fez sinal com a mão para que a seguíssemos. Toda a paz que eu estava sentindo se evaporou, agora não tinha mais volta, era chegado a hora.

A porta era no fundo da sala e quando passei por ela dei em um corredor escuro e estreito.

O cheiro pungente de mofo dizia que aquela porta quase nunca era aberta e a cada passo minha ansiedade crescia me fazendo questionar pela centésima vez se eu estava fazendo a coisa certa. Se eu não devia seguir o caminho mais fácil e apostar em Tiago e suas novas leis para recomeçar, pelo menos lá eu conhecia as regras, os costumes e não teria tanto medo de errar, mas fosse curiosidade, gratidão ou fascinação pela chance de algo novo eu continuava a dar passos.

Havia vozes à frente, conforme avançávamos o eco aumentava de potência.

Mais passos e o corredor deixou a escuridão para trás, pude ver a escada estreita, os degraus de pedra rústica e o pórtico arredondando que me esperava.

Tratado dos Párias - Supremo Alfa.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora