Noite de lua

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A nevasca foi embora, deixou tudo branco e a lua está alta no céu, hoje ela está muito brilhante.
Me levanto e sacudo a neve que se acumulou sobre meu pelo, saio de debaixo da árvore e olho para o céu.
Outros lobos uivariam ao ver a lua assim. Por algum instinto interior.
Mas eu não sinto nada.
Nada. O mais puro nada.
Apenas a acho bonita. E fico olhando para ela como um filhote que abriu os olhos pela primeira vez. Não me lembro o que eu vi quando abri os meus olhos, mas lembro do meu primeiro pedaço de carne, (não chamaria aquilo de pedaço hoje, mas para mim naquela época, era) um ratinho que minha mãe conseguiu pegar. Sou tão grata a ela por ter tido a bondade de me salvar, se naquela fatídica noite ela não estivesse lá para me salvar, eu não estaria aqui respirando.
O Corvo dorme tranquilamente, posso ouvir a sua respiração. Ele esconde tantos segredos, posso ver isso nos olhos dele. Por que ele me acompanha?
Fala tão pouco comigo.
Humm...
Quase nunca saio perambulando à noite, mas hoje quem sabe...
O sono simplesmente me abandonou e é insuportável ficar plantada no mesmo lugar como uma dessas árvores.
Talvez...
Não sua louca, você não vai até a toca dos humanos! Deixe de loucura e se sente aí, até seu sono chegar.
Minha querida consciência, dispenso seus conselhos, quero andar um pouco só isso. Para que eu iria querer ir até a toca deles?
Tem um motivo e vocês sabem o qual é. Mas deixa pra lá, vou apenas dar uma voltinha.
Que pode acontecer de tão ruim?
Quer uma lista?
Sem lista.
Ando pela neve brilhante por causa da luz da lua, está tudo tão calmo, o silêncio é quebrado pela minha respiração e minhas garras cortando a neve, logo percebo que não sou a única perambulando por aqui.
Uma raposa carrega um rato na boca e entra rapidamente em sua toca.
Uma coruja olha para mim e parece espantada. A encaro de volta, parece estar se prepando para dizer algo.
Ela me chama.
- Ei! Você!
Era só o que me faltava.
- Sim?- respondo e espero que ela fale logo o que quer.
- Você é uma solitária?
Pra que ela quer saber isso? Tenho que ter cuidado agora, ela pode avisar à algum lobo que estou por aqui. Corujas, algumas, são traiçoeiras e fiéis a algumas alcatéias. Vamos lá. Hora de mentir. Mais um talento meu, mentir para viver.
- Não.
- Ahh, pensei que fosse, parece perdida, de que alcatéia você é?- Ela me avalia com seus grandes olhos brilhantes.- Parece ser uma solitária...
Quem ela pensa que é para querer estragar minha noite? Sorte dela ainda estar na árvore.
- Pensou errado, e o que te interessa?- fui mais grossa do que eu esperava, merda, ela vai desconfiar.
- Nada, só um lobo cego de um olho que me pediu para avisar a ele se eu encontrasse uma loba cinza solitária, disse que queria falar com ela.- Me olha de novo. - Você parece muito com a loba
que ele descreveu, ossuda, pelo cinza nas costas e na cabeça, e olhos amarelos escuro.
Ótimo. Perfeito.
Já posso me considerar morta?
Será que posso enganar esta coruja que parece ter saído do inferno?
Vamos tentar.
- Sei com quem ele quer falar. - Tento parecer confiante, mas no final minha voz soa baixa.- Se quiser...
- Eu sei com quem eu quero falar.
Uma voz surge do nada e eu estremeço, é ele, o lobo que eu ceguei.
A coruja some e eu me deparo com o lobo marron, com apenas um olho, e o
lugar onde o outro olho estava, está vazio e escuro. Sinto um cheiro azedo de carne podre. Sua orelha ainda tinha alguns cortes. Que visão horrenda.
- Eu disse que ia te matar lobinha desgarrada.- Seu olho amarelo, o que restou, continuava frio e o ódio estava nele.- Perdi meu olho e se quer saber, doeu muito, mas não tanto quanto vai doer quando eu te matar.
Ele andava calmamente em minha direção como se já houvesse me matado com aquela frase.
Minha respiração acelera, e eu tento pensar em algo, mas não consigo.
Se eu correr vou gastar energia e sei que quando ele me alcançar vai me matar.
Se eu lutar agora, bem...
Sem chance. Ele é maior e mais forte que eu. Talvez...
Decido falar algo. Algo que provavelmente não ira acontecer.
- Talvez eu lhe tire seu outro olho.- ponho minhas orelhas rentes a cabeça, meus pelos se arrepiam e fico em posição de ataque.
Ele ri, seu riso logo se transforma em um rosnado alto e intimidador.
- Você tem muita coragem, mas é burra e vai morrer por isso.
Ele avança sobre mim, não recuo e recebo uma dolorosa mordida no meu ombro. Mordo sua pata com força até sentir o osso.
Ele continua dilacerando meu ombro até que eu consigo fazer com que ele me solte mordendo suas costas. Arranco um punhado de pelos e pele.
Ele morde minha pata traseira, solto um grunhido de dor abafado. Meu ombro está sangrando demais, um pedaço de pele foi arrancado e está pendurado posso ver a carne viva.
Mordo sua barriga, mas ele parece não ligar e continua a me atacar. Estou perdendo feio.
Até que finalmente ele consegue me derrubar e se diverte com sua vitória.
Meu sangue escorre pela neve, a carne viva do ombro queima sob o toque gelado da neve. Estou fraca e desorientada.
- Hora de terminar meu serviço. - Mira no meu pescoço mas para. - Vai ser muito melhor se você morrer agonizando, amanhã venho aqui ver os corvos comerem sua carcaça, lobinha.
Depois desse discurso macabro ele sai e para meu alívio some de vista.
Estou sentindo tanta dor, não consigo me levantar, me esforço para levantar o pescoço e ver o estrago que ele fez em mim. Meu ombro como eu disse, está carne viva com um pedaço de pele e pelos sujos de sangue pendurado, minha pata traseira sangra e também dói muito. Estou toda dolorida e cortada, ele tem razão amanhã vou estar morta. Mas por algum instinto de sobrevivência não quero desistir. Fico deitada tentando recobrar o fôlego até ouvir um bater de asas.
- Pelo uivo dos ancestrais! Raksha!
Era o Corvo. Sinto suas garras afiadas na minha barriga. - O que aconteceu?!
- Uma bri... eu apanhei daquele lobo marron, lembra?- Falo com dificuldade, não tenho forças para me levantar. Que ideia idiota a minha de sair andando. Que arrependimento.
- Lembro. Por que ele não te matou?
- Disse que queria que eu agonizasse até morrer. Tenho que sair daqui!
Tento me levantar, mas caio ao tentar.
- Vamos! Levante!
Tento de novo, caio de novo, com duas patas machucadas, uma dianteira
e outra traseira, não vou conseguir.
- Vamos!
O ombro lateja e com um esforço muito grande consigo ficar de pé. Estou tremendo. Ao dar um pequeno passo caio de novo. A pata traseira dói
ainda mais com o choque da queda. Não sinto vontade de chorar, sinto dor medo e frio. Tenho que sair daqui!
E se ele voltar?!
Tento de novo, consigo ficar de pé e dou alguns passos até cambalear e cair novamente.
Não posso desistir.
Não quero desistir.
- Escute, Raksha, eu irei te mostrar um caminho e você tem de me seguir entendeu?- O Corvo se preparava para voar.
- Como vou acompanhar você?
- Você vai! Ande!
Me levanto já desanimada e exausta, mas não caio dessa vez e vou mancando lentamente, seguindo o corvo.
Esta vai ser a pior caminhada de minha vida, se eu sobreviver, pensei e continuei andando lentamente me orientando pelo bater de asas do Corvo. A lua se escondeu atrás de nuvens cinzas. Adentro a floresta novamente. Desta vez está escura e sombria.



RakshaWhere stories live. Discover now