Fome, neve e medo

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Meu estômago está roncando há quatro dias, minhas patas estão começando a rachar por causa dessa neve, não tem nada por aqui, nem uma lebre velha ou um camundongo, só neve, árvores mortas, um céu que mais parece um cobertor de fumaça e frio, meu interesseiro "amigo" corvo, que só está comigo por comida e o vento que parece ter mais capacidade de uivar que eu, uma loba que vive aqui sozinha por um motivo ridículo. Deixe-me contar o motivo, ou melhor deixe que o corvo conte, ele viu tudo mesmo, afinal foi o dia em que eu nasci.
- Vamos conte, corvo
- Um terrível dia para se nascer, sim... terrível...
Era uma noite de outono, fria e sem lua. Eu voava de árvore em árvore, estava procurando Nerta, uma raposa que roubava filhotes de lobas desatentas, não para matá-los mas para outras alcatéias que precisavam de mais lobos, mas hoje ela não roubaria ela salvaria uma lobinha cinza recém nascida.
Achei ela perto de uma toca onde uma loba ensanguentada estava desesperada e sussurrava para Nerta que parecia estar completamente sem ação. Decidi ouvir a conversa, a loba havia acabado de dar a luz, em uma noite sem lua, não poderia existir pesadelo pior para uma mãe loba, todos na floresta sabiam o que aquilo significava, filhotes de noite sem lua devem morrer ao nascer senão poderam destruir todas as alcatéias, virariam monstros se sobreviverem, não se sabe quem disse isso mas ninguém ousava duvidar e logo os filhotes seriam mortos. Eram quatro no total três brancos e um cinza quase branco, a mãe os limpava com tristeza
a alcatéia toda estava reunida ali perto e o alfa logo teria de terminar o serviço, não era pai deles não ligaria, ele começou a andar em direção à toca junto com três outros lobos, a mãe ouviu, seus pelos se eriçaram. Nerta observava, não tinha aberto a boca, olhava para o filhote cinza era o que mais estava sujo de sangue mas já tinha seu cheiro próprio que com o tempo se tornaria único.
- Raposa?
- Sim?
- Salve um deles.
Antes que a mãe pudesse pensar em outra coisa os lobos invadiram a toca, a mãe tentou pará-los mas foi inútil, dentadas, arranhões, grunhidos , três filhotes mortos e um vivo na boca de uma raposa que corria para cada vez mais longe.
Tentei acompanhar Nerta mas ela foi mais rápida, raposas como sempre ágeis, vejo ela amanhã agora vou para outro lugar, onde alguns humanos moram com seus cães, estou com fome, lá eles sempre tem comida.
Quando cheguei perto de uma velha cabana de madeira vi uma cadela com
sua ninhada de filhotes, estava feliz ao contrário da loba que a essa hora deveria estar arrasada, voltando aos filhotes eles eram na sua maioria normais mas havia pelo menos uns dois que pareciam lobos, estranho, não fiquei muito tempo olhando, peguei umas sobras de comida e voei para meu ninho. Amanhã veria Nerta.
A toca dela era muito longe, em local descampado com poucas árvores e muitas pedras, a toca ficava em um buraco embaixo dessas pedras cobertas pou um musgo seco e velho, o céu estava azul mas o frio do inverno já se mostrava ao chegar lá percebi que Nerta estava apreensiva e
até com um pouco de medo.
- Nerta! - Pousei no chão coberto de uma grama ainda verde - O que aconteceu ontem? Eu estava te procurando!
- Não quero conversar corvo, estou com medo de me pegarem - falou sentando na grama e me olhando, ela tem que me contar! É melhor ir direto ao assunto.
- Quero saber sobre o filhote que você salvou ontem. - Falei - Por que o salvou? Conhecia a mãe?
- A salvei, é uma fêmea, sim conhecia ela era aquela loba que vivia solitária por aqui, eramos amigas pena que só consegui salvar um... - Falou mexendo as orelhas, talvez por raiva - O pai do filhote também era um solitário, ela só entrou na alcatéia por medo do inverno, não sobreviveria sozinha com os filhotes, não adiantou nada.
- Por que está nervosa? - sacudi as asas - Tem medo que te matem?
- Não, não tenho medo de morrer, tenho medo que achem o filhote, mesmo crescida o alfa irá reconhecer o cheiro dela, as outras alcatéias quando souberem também, e irão tentar matá-la. - Levantou da grama e andou até a toca - Venha ver ela, essa filhotinha quer viver.
- Como vai alimentar ela? Você nao tem outros filhotes...
- Sei de algumas ervas que vão me ajudar, ande, corvo.
- Nerta, por que fez isso? - Ela não arriscaria sua vida por nada - Por que a salvou?
- Ela precisava viver, é importante de alguma forma que ainda não sei explicar.- falou e correu para a toca, desci para o fundo da toca quase escura e quente, uma brecha de luz me deixo ver a filhote, estava limpa parecia uma bola de algodão cinza e dormia tranquilamente como se nada tivesse acontecido.
- Já tem nome?
- Sim, vou chamá-la de Raksha e serei sua mãe.
Agora voltamos ao presente.
- Você é um ótimo contador de histórias, Corvo. - Esse é o motivo de minha vida isolada, tenho medo de me matarem, nunca falo com outros lobos, aliás nunca vi nenhum outro lobo muito de perto. Às vezes imagino como e viver em uma alcatéia mas logo tiro essa ideia da minha cabeça, nunca vai acontecer mesmo, e se eu não tratar de procurar comida logo, não chego até o fim desse inverno que parece estar demorando mais que o normal. Não posso parar de andar senão congelo e se eu continuar andando não terei energia para correr atrás de algo, bem é melhor morrer de fome do que congelada. Farejo o ar, não há nada, farejo de novo e nada, continuo andando até chegar perto de uma árvore morta, hummm... tem cheiro de coelho, um coelho gordo e delicioso, se bem que posso comer qualquer coisa agora, estou o couro, o osso e os pelos. Cavo a neve até sentir o coelho em uma de minhas patas, finalmente comida. Antes que eu possa matá-lo ele pula e foge, perco o rastro, que porcaria! Você vai morrer de fome sua lerda! Minha consciência me lembra que sou um desastre para pegar coelhos, a única coisa que eu caço bem são alces e outros bichos que estejam doentes, nesse inverno o que eu mais ando comendo são carcaças que outros lobos bem mais sucedidos que eu, matam, devoram e o que sobra é meu, ossos com filepas de carne grudadas e restos de órgãos, não sobra nada que preste, também nao tenho outra opção é isso, tentar caçar ou ir roubar comida dos humanos que é uma das piores coisas para se tentar fazer, eles tem cães que avisam quando um lobo chega. Detalhe adicional, para eu conseguir as carcaças, tenho que entrar em territórios de várias alcatéias diferentes e se tiver sorte comer algo sem ser notada. No momento estou entrando em um território, hora de ficar atenta, se perceberem minha presença me atacam, e eu não tenho condição nenhuma de enfrentar quatro ou três lobos. Farejo o ar, sinto o cheiro de sangue, sangue de uma rena, sigo o cheiro e logo me escondo ao ver cinco lobos marrons devorando a carne fresca da rena. Terei de ficar escondida até eles saírem, pelo menos o vento está a meu favor e leva meu cheiro para longe. Ficarei aqui até terminarem, parece que vai demorar. Meu estômago está começando a doer...

RakshaWhere stories live. Discover now