Uma carcaça congelada

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Continuei ali escondida, vi cada lobo devorar sua parte, estavam famintos mas nem tanto quanto eu que continuava escondida atrás de uma árvore, começou a nevar, a parte de cima das minhas costas que é cinza quase preta está coberta de neve os flocos e cristais de gelo se apossam dos meus pêlos e me camuflam ainda mais. O ar frio entra nas minhas narinas, é horrível parece que vai me congelar por inteira, ver outros lobos comendo, sentir o cheiro da comida e não poder comer chega a ser pior que o frio. Aguardo pacientemente enquanto observo eles devorarem a rena, o maior deles é mais agressivo e pega os maiores pedaços, deve ter sido ele quem liderou a caçada, os outros menores se contentam com as patas e o pescoço. Deixe me contar algo sobre os territórios e onde eu vivo, eles não tem nome, a única distinção entre eles é o cheiro, cada um tem um cheiro característico que é a união dos cheiros de todos os lobos que pertencem à alcatéia, esses no momento só cheiram a sangue e morte. Onde eu vivo? Nunca tive um local pra chamar de lar, ando vagando
por aí e torcendo para que ninguém perceba minha presença, já apanhei algumas vezes mas nada que pudesse me matar, só uns arranhões e uma pata manca. Cadê o corvo?
Está anoitecendo, a lua está começando a sugir no céu, com sua luz prateada para iluminar a noite. Não uivo, nunca uivei, não consigo, minha mãe, Nerta, uma vez me disse que a lua dá a capacidade de uivar aos lobos, como ela não estava na noite em que nasci não tenho este dom e é por isso que vivo assim se eu entrasse em uma alcatéia e me pedissem para uivar, eu não ia conseguir e eles saberiam que nasci numa noite sem lua e a morte me daria um olá. Irá fazer um inverno que decidi deixar a toca de minha mãe e viver por conta própria. Nós animais da floresta medimos
a nossa idade e outras coisas pelas estações, por exemplo eu nasci à dois outonos atrás e por aí vai.
Estão saindo um a um, o último que fica é o lobo grande para meu azar, assim que ele sair eu vou, a minha fome parece ter se apossado de meu corpo e agora estou completamente ligada aos meus instintos de sobrevivência. O que a fome e o frio não fazem. Ele saiu, finalmente. Olha para a carcaça uma última vez e vai embora.
- Corvo?- sussurro- corvo? Vamos comer!
- Quieta!- ele sai de algum lugar onde estava escondido- vou ver se ele está longe o suficiente.
Depois de um vôo rápido ele volta.
- Vamos! Rápido!
Nem respondi, corri pelo campo aberto, a neve estava um pouco mais funda do que eu espera e me deixava mais lenta o que pode atrapalhar uma fuga rápida.
Cheirei a carcaça, estava, digamos levemente congelada, achei uns pedaços grandes, eram os órgãos. Não mastiguei muito apenas ia engolindo o que dava, não eram pedaços de músculos mas estavam matando minha fome enquanto o corvo havia devorado os olhos e se dirigia para a língua. Nenhum de nós falava. Sinto algo me observando, que merda! Minha consciência estava certa, que merda.
- Raksha...- o corvo olhou para mim com uma cara penosa
- Eu sei. - Sussurrei de volta.
Assim que me virei, me deparei com o grande lobo marron.
Seus olhos amarelos e frios me observavam como se estivessem escolhendo que área atacar, é bem maior que eu. O sangue sumiu das minhas veias embora meu coração pulsava tão forte que chegava
a doer minha cabeça, estava pronta para fugir.
- Sua ladra... - rosnou - Não sabe caçar?
Sua voz me cortava. Insinstivamente baixei as orelhas e coloquei a cauda entre as pernas. Corra! Corra! Correr é um plano bem melhor. Me virei rapidamente e comecei uma corrida desesperada, a neve funda atrapalhava demais e para aumentar o meu pânico ouvi seus passos na neve. Ele uivou, ótimo posso me considerar morta, estava chamando os outros. Responderam prontamente uivando de volta. Agora cinco lobos raivosos corriam atrás de mim pela floresta seus passos estam mais próximos a cada segundo que se passa. Escuto um deles dizer: - Vamos matá-la?
Espero que não.
Estou ofegante vou parar de correr a qualquer momento, como por exemplo, agora.
Eles me cercam, estão rosnando e um deles chega a salivar. Boa hora para minhas desculpas esfarrapadas.
- Eu estava com fome...
- Sabemos, você está horrível.
Dispenso descrições sobre minha aparência, sei que até minhas costelas aparecem nos pêlos.
- Acontece que está no nosso território.- O lobo de olhos amarelos rosnou - e não somos conhecidos por termos piedade de invasores.
Antes que eu pudesse pensar em algo ele me atacou, os outros observavam, esperando sua vez. Então é assim? Vou morrer hoje? Depois de tudo que passei? Ah, não, hoje não.
Ele mordia meu pescoço. Mordi sua perna com toda força que me restava depois de correr, pouca força, sei disso mas pareceu resolver. Ele largou meu pescoço que para minha sorte não teve cortes muito profundos, mas sangrava. Ataquei sua cabeça. Arranhava mordia ele fazia o mesmo comigo, em algum momento acertei seu olho com uma patada, ele se distanciou de mim. Seu olho sangrava e sua orelha estava rasgada eu havia cegado ele. Os outros observavam.
- Outro dia... nos veremos e você vai morrer, lobinha desgarrada. - respirava com dificuldade estava sentindo muita dor por causa do olho. - Vamos embora. E você também vá embora.
O grupo o seguiu pela floresta que estava prateada por causa da lua, sumiram entre as árvores secas e tristes. Eu comecei a andar um pouco e decidi parar para ver onde ele tinha me arranhado. O sangue do meu pescoço formou pequenos cristais vermelhos, há arranhões por todo meu corpo, me deito no meio da neve e começo a lamber os ferimentos primeiro os da minha barriga.
- Raksha. - Era o corvo. - pensei que você fosse morrer hoje.
- Também pensei.- Eu jurava que morreria hoje - Mas estou viva.
- Eu não o vi chegando...- disse abaixando a cabeça - Desculpe.
- Não se culpe, ele foi silencioso demais nem eu o ouvi. - terminei de limpar a barriga agora os ombros - Pelo menos conseguimos comer alguma coisa.
Eu posso ter apanhado mas estou de barriga cheia.
Começou a nevar.
É melhor eu continuar a andar até achar uma toca vazia. Talvez amanhã eu faça uma visita a casa dos humanos, é perigoso mas é melhor que passar fome de novo o corvo sabe o caminho vive passando por lá para roubar comida.
- Corvo?
- Sim?
- Me mostre o caminho para a casa dos humanos.
- Não.
- Está bem...
Irei seguir ele então amanhã e à noite pego comida. O único problema são os cães eles iram avisar mas posso dar um jeito nisso.
Continuo andando até chegar em um tronco caído, perfeito, cavo a neve para conseguir ficar embaixo dele quando consigo me deito, enrolada como uma doninha observo a neve cair lentamente pela floresta as cascas das árvores estão negras e ressecadas, sem vida, quando a primavera chegar a vida vai retornar para elas. O corvo se aninha numa árvore alta e põe a cabeça entre as penas escuras das asas. Não há nenhum som além o da minha respiração.
Mais um dia.
Você vai sobreviver.
Sim, vou sim.
Adormeço observando a neve cair... mais uma noite.








RakshaWhere stories live. Discover now