VIRMÍRIA I {REVISÃO}

By Antares94

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VIRMÍRIA I {Capítulos do I ao XX revisados} -------- Vinst da Domere é o capitão do Viúva do Kai, às ordens d... More

MAPA I: O Mundo Conhecido
MAPA II: Os Reinos da Noite
MAPA III: A Região dos Vulkers
I - VULKERMÓNT
II - O MEDALHÃO
III - TÚLINVER
IV - O CASTELÃO
V - O ATAQUE DAS SERPES
VI - PREÇOS E PRAZOS
VII - O COVIL
VIII - BASTIÕES
IX - ENTRE VIELAS
X - JAULA DE MARFIM
X.I - A HISTÓRIA DE HÁJEN
XI - VVIDËV KAIS
XI.I - INQUIETAÇÕES
XII - NO MAR DE GELO
XII.I - ELDER SE EXPLICA
XIII - CULPA
XIII.I - O JURAMENTO
XIII.II - A CIDADELA
XIV - A SUSPEITA DO ACÓLITO
XIV.I - UM CONVITE
XIV.II - IMVOLK
XIV.III - RELATOS DO SARHÁJO
XV - O MAGÍER RETORNA
XV.I - A VIAGEM DE RAËRN
XVI - STEENSARK
XVI.I - ÚLT-TRARK
XVII - COLINA ABAIXO
XVIII - CALENDÁRIOS CÓSMICOS
XVIII.I - ANDERN'MÚN
XIX - A VELARIA DE VULKERMÓNT
XIX.I - TEMPLO DE GUERRA
XX - O HAXEN FERIDO
XX.I - PERTURBAÇÃO
XXI - A TORRE MAGÍERA
XXIII - A PARTIDA DOS VULKERS
XXIV - O INVERNO NOS REINOS DA NOITE
XXV - A NOITE SEM LUAS
XXVI - A MARCA DA SOMBRA
XXVII - A PRIMEIRA FLECHA
NOTAS SOBRE VIRMÍRIA I
NOTAS SOBRE VIRMÍRIA II.I

XXVIII - O CAPITÃO DESPERTA

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By Antares94

O mundo era um lugar muito, muito escuro, mas isso não impedia outras coisas — e outros seres! — de serem ainda mais escuros: era nesse mundo que Vinst caminhava.

Os sentidos já não faziam mais parte do que era o capitão, da mesma forma que ele, que era tanto o mundo quanto o homem que o descobria, não mais contava o tempo como o fazia antigamente — muito, muito antigamente —: o tempo agora passava com as badaladas do sino que ele mesmo comandava.

Senhor do tempo, o homem de negro parou suas andanças no mundo, pois já não mais conseguia divisar uma coisa da outra, e, certo de que chegara a hora da escolha — não qualquer escolha, ele sabia, mas a escolha! —, caminhou até a grande torre negra, onde já estivera algumas vezes.

A chuva, que caía do céu plúmbeo, ricocheteava nos altos telhados e era recolhida em torrentes pelas calhas que desciam com toda a água até as gárgulas e quimeras: demônios de pedra que vomitavam a chuva para longe da pedra, amaldiçoando-a no caminho e trazendo infortúnio a todos aqueles que dela consumissem — e era sob uma dessas torrentes de água que Vinst punha-se, o chapéu já encharcado dobrando-se nas abas enquanto um fio grosso de água perpassava suas vestes e fazia sua pele arrepiar-se.

Trovoadas, brandas como reflexos de outra vida, balançavam o mundo de quando em quando, mas nada o afastaria daquele momento: era a hora de fazer a escolha, pois o titã voltava, ele sabia, e com ele sabia! Sentia suas asas, maiores que reinos, avançarem no escuro; suas mandíbulas, cerrada por dentes que mais se assemelhavam a torres de telhados altos, contorciam-se: Wirmyir também era escuridão, assim como ele.

Precisava vê-lo, decidiu Vinst, mas para isso tinha que trazer aquele momento até onde estava.

Ordenou que o sino badalasse, e assim ele o fez: uma, duas, três vezes. Não contente, ordenou que continuasse, até que o décimo segundo badalo ressoou e a cidade, perdida no esquecimento, carente de sons e cheiros e coisas para ver, pareceu prender a respiração por um instante.

A grande porta da Velaria de Vulkermónt se abriu diante do capitão, oferecendo, além de abrigo para a chuva, a escolha. Seu interior era negro como nada antes visto, pois ali dentro manifestava-se o que havia de mais assustador dentro de si, de forma que seu interior erguia-se como uma parede tão insondável quanto impenetrável, de onde surgiram criaturas esguias que ofereceram ajuda ao capitão.

Vinst, confuso, pôs-se a observá-las, pois acreditava que tais criaturas já não mais vivessem em Era, e, no entanto, alheias à sua vontade — pois aquele era o seu mundo —,  os seres antigos saltaram de lá de dentro, deixaram as túnicas cair e revelaram sua verdadeira fisionomia, em nada diferente das estátuas e imagens que o capitão havia visto em outros tempos — em outra vida.

— Capitão Vinst, aguardávamos por sua decisão: dê-nos a chance de acompanhá-lo mais uma vez, sim? — disse uma delas, a voz ecoando pela cidade, ricocheteando nas muralhas.

— Não! — respondeu. — Não tenho tempo. Além do mais — hesitou —, não conseguiria passar por essa escuridão — e, dito isso, os seres simplesmente curvaram-se diante do capitão, os rostos forçados contra o chão.

Vinst, certo do que fazer, rumou à velaria — não às portas, mas às paredes externas, cujas pedras, assentadas com esmero e perfeição pelos mestres inores, abriram deliberadamente brechas em sua alvenaria, nas quais o capitão pôs-as mãos e, ágil como um gatuno do mar que era, começou a escalar. 

Pé ante pé, mão após mão, Vinst venceu a altura que antes o separava do topo daquele grande anexo; não sem qualquer desventura no caminho, porém: por vezes, pendurado apenas por uma mão, sentia a pedra mordê-lo, esmagando-lhe os dedos apenas para depois tornar-se novamente firme ao toque, pois as pedras — ente elemental essencialmente mal —, apesar de facilitar-lhe o caminho ao topo, gostavam de pregar peças e alegravam-se com os gemidos de dor.

Mal havia passado um quarto de hora — ou algo parecido — e Vinst alcançou a cornija que encimava aquele primeiro edifício; achou apoio para mão por entre as volutas e gavinhas esculpidas e elevou-se sobre a saliência de pedra, espantando os corvos que empoleiravam-se por ali, crocitando contra a aparição daquele ser em negro — Vinst era, para todos os efeitos, o maior dos corvos! Seguiu seu caminho, pulando por sobre um frontão simples e pondo-se de pé sobre a cumeeira, o ponto mais alto do telhado, que levava-o direto à primeira torre da velaria — a mais robusta e grosseira: a subida.

As telhas molhadas e marcadas por musgos ofereceram pouco ou nenhum perigo aos pés experientes do capitão, que, com os braços estendidos, caminhou com firmeza, pois à vista de um homem que desde seus mais tenros anos escalava os mastros e corria pelos traquetes dos navios, tal atividade mostrava-se, se não simples, decerto natural. Nem mesmo a ventania repentina, fruto da tempestade que àquela hora engolfava a cidade em seus domínios cinzentos, pôde fazer algo além de agitar o longo casaco, e, ao cabo de alguns minutos, o capitão voltou a tocar a pedra, que, como antes, também abriram-se às mãos.

A segunda escalada tomou-lhe bem mais tempo e o capitão, exausto, teve de acocorar-se nas quimeras que vomitavam a água da chuva e tomar fôlego para que prosseguisse a tarefa — ele escolhera assim. Foi com surpresa que, numa dessas paradas, o capitão viu galgar os céus um longo e veloz raio azul. De início sentiu-se atordoado, pois, mesmo ali, os raios vinham de cima! Pôs-se a observar a tormenta que era aquele mundo: a luz, plúmbea e difusa, perdia-se nas torrentes de água que dançavam ao encontro dos telhados de Vulkermónt, ora encobrindo, ora revelando os marcos que adornavam a cidade, e de súbito ocorreu-lhe um sublimes momentos quando o mundo deliberadamente conduz os sentidos àquilo que deve ser percebido: as brumas e as águas, como que ao comando de uma ordem cósmica, afastaram-se, deixando entrever a colina da citadela, onde a torre alva — a Torre de Cristal — resplandecia. 

Era a morada de um antigo feiticeiro, Vinst se lembrava; ou seria ele bruxo-negro? Pouco importava, pois já estava velho e louco — e, como que para confirmar o juízo que imperava na mente do capitão, viu a figura curvada espreitar através do grande óculo que despontava da cúpula de cristal e conjurar contra o céu um outro relâmpago, e mais outros, que se ramificaram inúmeras vezes até formar a forma de uma gigantesca árvore diante dos olhos do capitão, que se segurava com afinco aos chifres do demônio de pedra, pois sentia-se de repente aturdido demais pelos efeitos e magias do velho.

Os raios e seus respectivos ramos pareciam rumar cada qual ao encontro do seu alvo, e sumiram. O que haviam acertado, Vinst só pôde ver um pouco depois, quando formas escuras começaram a despencar das nuvens, deixando um rastro escuro por onde passavam.

— São homens! — e o demônio de pedra meneou com a cabeça, condescendente, sem no entanto deixar de vomitar toda água que escorria pela calha até ele. — Estão em chamas! Oh, este maldito velho — maldito feiticeiro, ou o que quer que seja! — queima os homens que voam! Como o odeio! — O velho, observando-o pelo óculo, transformou-se de súbito em um grande olho — a Visão — e as nuvens, ainda sob o comando de algo extraordinário, logo se encarregaram de encobri-lo novamente. A citadela tornou-se novamente uma mancha escura, vista com dificuldade através da cortina de chuva.

Os corpos perfuravam as nuvens em direção à cidade, como as pedras de fogo que um observador atento vê riscar o céu noturno quando tem sorte e, por vezes até, chocam-se contra a terra, criando crateras — e o mesmo faziam os homens, destruindo telhados em seu caminho retilíneo, e de lá surgiam pequenos focos de incêndio; à medida que Vinst observava o desastre que se desenrolava, percebeu que, ao contrário do que se presumia, a chuva não extinguia as chamas, que só se faziam aumentar, até engolirem prédios inteiros e lançarem suas labaredas em resposta à chuva.

— Preciso continuar! — exclamou Vinst para si mesmo, mas, antes de se voltar às pedras — uma fenda se abrira à sua mão naquele instante —, percebeu o corpo que voava na sua direção; prevendo o acidente, abaixou-se, encolhendo-se contra a quimera, ao que o homem chocou-se num baque audível contra a torre e mergulhou todo o caminho até os telhados do primeiro prédio, fazendo um pequeno orifício nas telhas, mas lá dentro Vinst viu uma chama brilhar. 

Voltou-se novamente contra a torre, agora com uma certa urgência, e pôs-se a escalar, a torre ora mostrando-lhe o caminho, ora zombando dele, ao morder-lhe a mão e deixá-lo perdurado enquanto o vento, fazendo seu trabalho, tentava assoprá-lo para longe da velaria.

Os corpos continuavam a cair do céu, mesmo após uma longa e fatídica hora de escalada. Era como se os raios tivessem acertado uma imensa esfera que pairava sobre a cidade, repleta daqueles homens flamejantes. Não raro viu-os chocar-se contra a torre e, como o primeiro, despencar prédio adentro. O telhado, àquela hora já quase sem telhas, resistia, armado como o esqueleto do próprio leviatã, revelando as chamas que consumiam as paredes sobre as quais Vinst movia-se.

— Não caia! — disse para si mesmo.

Logo uma espessa nuvem materializou-se ao seu redor, e Vinst, mal vendo a própria mão, teve que tatear através da cerração para continuar a subir, e foi assim que soube que chegara ao topo enfim, pois encontrou o beiral e depressa elevou-se sobre ele, andando com cuidado sobre as telhas molhadas. O vento ali em cima era fresco e suave, como o era nos dias bonitos em que o sol aquecia o corpo.

Pináculos escuros em forma de antigos mediadores dos Reinos da Noite, vigiando os lados da torre octogonal, observavam-no com cuidado ao passar, mas Vinst, por sua vez, só tinha olhos para o que despontava do alto do telhado: uma figura larga, de braços estendidos, como que à espera de um abraço.

À medida que se aproximava, cada vez mais liberto das brumas, viu duas cabeças surgirem sobre aquele estranho grupo escultório; tratava-se — pôde perceber — de duas pessoas: de um lado, um homem, a capa esvoaçante e o olhar assombrado por um terror indescritível, apontando com vigor para algum lugar ao sul; do outro lado, uma mulher jovem e bela, o rosto igualmente desfigurado pelo pavor, apontando para o noroeste.

Vinst não pôde decidir se abraçavam-se ou sacudiam um ao outro para que prestasse atenção ao que de tão horrível vinha daquela direção. Talvez façam os dois, pensou, pois ele conhecia bem a estranheza e a dualidade do medo: a mulher que temia por si, abraçava o homem, da mesma forma que, temendo por sua vida, chamava-o para que olhasse o que vinha em sua direção; e o mesmo valia para o homem.

— Sim! — decidiu-se, falando baixinho consigo mesmo. — Abraçam-se e agitam-se mutuamente!  

Seguiu primeiro o dedo da mulher, virando o rosto para algum lugar próximo ao sol poente e percebeu de monstruoso naquela região. Sua visão, como que independente do corpo, passou a vagar em direção à coisa, voando muito além da cidade em chamas, passando por campos e florestas antigas, cujas copas, altas como poucas torres em Era, deixavam as folhas vagarem com o vento, voando até próximo daquela estrutura monstruosa que Vinst observava de longe e, ao mesmo tempo, de tão perto. 

Negra como poucas criações humanas ousam sê-lo, e como nada que a natureza — livre de qualquer associação maligna — podia alcançar, a estrutura era tão delgada quanto delicada, composta por sucessão de arcadas sobrepostas, retorcidas de modo antinatural, como que esticadas por uma mão invisível, gigantesca, e sulcados por caneluras profundas por onde escorria um líquido espesso, de um brilho bruxuleante, que tingia o mundo ao seu redor de um verde pálido e doentio.  

O mais intrigante e sinistro, porém, era o que a estrutura sustentava — e, ao pôr os olhos naquilo, Vinst não pôde impedir-se de, tal como a mulher, deixar o pavor aflorar no rosto —: uma grande esfera verde-esmeralda pairava sobre um pedestal curto, cravado por quimeras de pedras que, como as da velaria, vomitavam o que escorria até elas — o líquido verde! Rodeando o conjunto, centenas, talvez milhares de penados, de rostos simples e cabelos esvoaçantes, trajando as vestes peroladas e emitindo um zumbido alto e grave que, para ouvidos mais atentos, revelaria-se um gemido agonizante.

As pernas cederam e Vinst caiu sobre as esculturas, evitando olhar de novo para aquela direção, delineada pelo crepúsculo que subia contra o céu, tingindo o iridescente de negro, escurecendo o azul e trazendo as estrelas.

Recompôs-se após certo tempo e pôs-se novamente de pé, agora observando o homem: não havia percebido, mas, analisando melhor os traços, nutria com ele certa semelhança! E, seguindo seu indicador, sua visão voltou a voar pelo espaço como a luz, em direção ao sul, sobre o Mar de Gelo, pontilhado pelo branco das calotas glaciais, sobrevoando a Këalia, envolta nas brumas do grande vulcão, e muito, muito além, aonde a luz dos sóis não penetram — nem ousariam se pudessem, pois naquelas regiões, onde a lava é a única fonte de luz, somente as mais vis criaturas sobrevivem.

E foi de lá, entre as ruínas de algum império tão frio e escuro quanto o próprio Umbral, que Vinst viu as grandes asas tomarem forma, e eram tão longas que por algum tempo foi tudo o que conseguiu ver daquele terrível mundo. Ao desenrolarem-se, as grandes asas suscitaram à sua volta maremotos e acordaram os vulcões, que que explodiam em fogo e brumas venenosas; castelos ruíram e as falésias, onde as criaturas mais horrendos tomavam abrigo, despedaçaram-se sob uma voz gutural que anunciava uma nova era. 

O grande anel que sustentava os mares e continentes ecoou todo o poder daquele ser, pois era Wirmyir, o seu criador, que despertava e assombrava o mundo com as asas do caos. Destruiria novamente tudo que o tempo construiu!

O grande titã ascendeu ao céu com um golpe de asas que fez a terra, onde por eras a fio descansou, descer ao encontro das ondas, e quando por fim descerrou as pálpebras, dois raios de luz cortaram a escuridão do mundo que deixava para trás, em direção ao norte, pois era onde seus inimigos se proliferavam — onde seu papel em seu próprio mundo se desenrolaria! As mandíbulas poderosas se afrouxaram e do interior da boca cavernosa surgiu a língua bifurcada, tão longa quanto delgada, que esquadrinhou o mundo e achou-o: era a Vinst que procurava, o grande titã!         

O olhar que Wirmyir lançou ao capitão, mesmo a milhas e milhas de distância, fez suas entranhas se corroerem; os ossos do corpo fundiram-se como o ferro sob o fogo de dragão e novamente o capitão apoiou-se nas estátuas que eram com efeito a expressão pétrea de todo medo que sentia diante tais acontecimentos tão assombrosos quanto reais. Mesmo a face do homem — agora decididamente o próprio Vinst — pareceu contorcer-se um tanto mais à vista do grande titã, que batia as asas com tanta força que as águas gélidas abaixo de si contorciam-se e grandes ondas seguiam a poderosa calda escamosa. 

— Então é essa a decisão! — exclamou, enquanto tentava pôr-se de pé. — Devo decidir-me entre essas — e, mesmo ciente do que eram, resolveu não nomeá-las —; entre essas coisas! — repetiu. 

Vinst, que não acreditava no destino ou em quaisquer propósitos ocultos da Vontade Única para si, ouviu a penosa voz que zumbia em seus ouvidos; uma voz vinda do interior — da porção mais superficial do profundo abismo que era a alma do capitão — teimava em fazê-lo ajoelhar, prostrar-se diante do crepúsculo e implorar pela força de Arkik, o grande deus de guerras invencíveis. 

A voz crescia à medida que o titã se aproximava e os gemidos da torre se tornavam mais audíveis, ameaçando enlouquecê-lo — ou roubar-lhe a alma! Seus joelhos cederam mais uma vez e o capitão viu-se, pela primeira vez desde a infância, prestes a humilhar-se diante do deus dos seus pais, cujo nome fora cosido mais de mil vezes nos mais distintos estandartes do mundo: o grande Deus da Guerra, Arkik, ajudaria-o! 

Foi quando algo de natural e animalesco, que vinha de uma região muito mais impenetrável do seu ser, impeliu-o de volta para cima sem que ele fizesse qualquer esforço, como um mestre de marionetes o faz sem que as cordas se afrouxem. 

Sentiu o gosto de água doce, ouviu o farfalhar de folhas e o cheiro de brotos verdes; sua natureza chamou-lhe pelo nome e ele não se esqueceria de quem era: gritaria se o pavor o tomasse de assalto, choraria se a dor se tornasse insuportável e gemeria quando esta se arrastasse por toda uma vida, mas, na iminência da morte, abriria os braços e limparia a mente — e foi o que fez o capitão, e Arkik, que corria para seu servo para emprestar-lhe de sua força, chocou-se contra uma parede verde iridescente e recuou!

Os sinos da velaria, bem como os de outras torres que ladeavam a cidade em chamas, soaram melodicamente; o tamborilar suave da chuva encheu-lhe os ouvidos e o gemido da torre longínqua pareceu silenciar-se de súbito. De braços bem abertos, Vinst inspirou e o ar veio limpo e fresco, revigorando-lhe as forças e apurando-lhe o juízo, que, por medo e pavor, encontrava-se confuso. E, tendo a mente limpa, como havia de sê-lo, sentiu pela primeira vez em toda sua vida aquela uma presença, tão familiar quanto bem-vinda, que viera para virar o jogo de forças ao seu favor. 

Ao abrir os olhos, percebeu a figura escura que caminhava em sua direção. Era tão alta que as nuvens abriam-se ao seu torso, revelando as vestes negras que agitavam-se com o vento. Construções e muralhas ruíam sob suas passadas; os corpos em chama colidiam contra seu corpo e sumiam de súbito; nem mesmo o feiticeiro pôde detê-lo: seus raios falhavam contra as vestes escuras do caminhante.  

Um gigante!, pensou Vinst consigo mesmo, mas até ele, que era novo demais para ter conhecido qualquer ente daquela raça antiga, sabia que aquele ser que destruía estalagens e palacetes a pisadas superava de longe os maiores gigantes que as Terras Verdes uma vez abrigaram  — mesmo Grandarvaúr, que curvava-se para passar nos portões de sua cidade-montanha, não passaria dos joelhos do grande caminhante.

Dos ombros largos e rijos subiam um grande círculo negro que ocultava a face do homem e, quando este já subia os jardins da Velaria — as grandes botas destruindo árvores e canteiros de uma só vez —, Vinst gritou:

— Quem é você?! — o grito ecoou pela tempestade como uma pedra lançada num lago plácido, voltando ao capitão de todas as direções e com vozes — e respostas — diferentes entre si. — Quem é você?! — repetiu mais alto, o rosto do ser agora bem próximo ao telhado e olhos —  olhos tão familiares — emergiram de onde só havia trevas. 

— Tudo o que você pode ser — começaram os olhos, pois era de onde a voz vinha — eu sou! 

Os olhos então silenciaram-se e observaram-no apenas, perdido em pensamentos e lutando com a própria mente para entender o que as palavras haviam de significar. 

— Quem é você? — e os olhos, como que decepcionados, fecharam-se: não responderiam. — E por que é tão grande, se é o que diz ser? — tentou Vinst. 

Seguido um longo momento de silêncio, no qual Vinst pensou não mais receber qualquer resposta, os olhos apareceram mais uma vez, e disseram:

— Sou o que sou — e como sou — pois esse é seu mundo, Vinst, e a Verdade é o que trago comigo: gigantesco será, se assim o decidir; será o que quiser, é o que afirmo, mas eu sou mais profundo querer: sou o que o chama pelo nome e que o põe de pé; sou sua origem — sua essência — e, por isso, seu futuro mais perfeito, pois não me misturo com as coisas que o mundo planeja para sua vida e mantenho-me tão sólido quanto o firmamento, onde sua âncora pode se firmar. Sou o seu querer, Vinst da Domera, e por isso venho lhe falar e anunciar suas escolhas: escolha com sabedoria!

— Sim! — afirmou meio para si, meio para o mundo em volta, e, lembrando-se da escolha, voltou a sentir o medo que brotava do chão como o frio e a umidade brotam das margens dos rios. Olhou para o grande ser e sentiu brotar de si um calor que faria ferver a água dos mares, tal qual o fogo de Wirmyir, e, do grande círculo negro viu surgir sua própria face: seria um colosso! 

Mas para isso deveria decidir-se.

Afastou-se das estátuas gélidas e empertigou-se: não deixaria o medo dominá-lo! Firmou os joelhos e deixou o ar fresco das alturas inundá-lo.

Os olhos tornaram-se mais aguçados — pareciam sustentar suas atitudes.

— Então devo morrer! — é o que diz, não é mesmo? — perguntou Vinst. Uma outra pergunta porém assaltou-lhe a mente em seguida — algo mais importante e urgente que por um motivo qualquer ainda não havia pensado: — Já estou morto? 

— Você quer estar morto? — disse a voz, cujo tom, tão contrário ao mundo caótico, materializava a serenidade que Vinst buscava dentro de si. 

— Não — respondeu Vinst.

— Então você não está morto, mas precisa se decidir, pois Wirmyir não demora a chegar em terra e a Torre das Almas tem sede da sua!

— Mas então devo morrer? — repetiu.

— A morte é o caminho: sempre foi e sempre será! — respondeu. — Esse é seu mundo, Vinst: decida-se!

Vinst voltou-se para as estátuas. Olhou novamente para a mulher, reconhecendo-a por fim, e beijou-a, sentindo as lágrimas quentes escorrerem pelo rosto: aquela era, afinal, a despedida que tanto evitara! 

— Que me queime por mais uma vez virar as costas ao que me indica: sei que teme pelos monstros que rondam o mundo; pelo que há de mais material e concreto: pelo que fere e causa dor na carne. Mas eu tenho a mente de um navegante e persigo ideias e sentidos: persigo o que flutua e o que dá forma às ondas! — exclamou Vinst, e parou por algum tempo a fim de tomar fôlego para dizer o que deveria ser dito. — Enfrentarei o que há de maior e mais pavoroso nesse mundo, minha querida Eloés, é o que decido! — E, dizendo isso, voltou-se para o grande titã que ameaçava destruir seu mundo por completo.

O titã, ouvindo por fim a decisão de Vinst, deixou escapar das narinas labaredas tão terríveis que o reino de Këalia, por onde passava agora, arrebentou-se em fogo e mil vozes de agonia subiram da ilha; das profundezas Mar de Gelo surgiram bolhas enormes e a água salgada começou a ferver como o caldeirão de uma bruxa furiosa. 

O par de grandes chifres retorcidos, de tom plúmbeo e ferroso, tornou-se incandescente e a lava escorreu pela miríade de pontas e cornos que formavam a carranca do titã, tal qual veias de fogo abraçando um órgão podre e escuro, ou rios de lava, corroendo a terra e formando vales profundos.

Vinst voltou-se para o ser com quem palestrava mas descobriu-se de súbito sozinho em cima da torre: seu mundo, que sempre fora escuridão, resumia-se agora àquela torre da velaria, ao titã e a seu fogo destruidor, que subia a alturas vertiginosas e ameaçava descer sobre sua cabeça, como um gigantesco domo incandescente que rui em uma vertiginosa miríade de fragmentos. 

As asas de Wirmyir agora preenchiam todo o sul e estendiam-se lentamente às outras direções de forma tão anti-natural que Vinst decidiu nem tentar compreendê-lo; que o mundo ruísse, afinal: fizera sua escolha e, sendo quem era, não seriam os olhos de fogo, injetados com o presságio de morte e destruição, que fariam seus joelhos cederem novamente!

O grande titã — colossal em suas proporções — plainava na escuridão; mesmo ainda longe, as pedras que formavam a torre trincaram e as gárgulas e quimeras — demônios naturalmente pérfidos — gritaram de medo enquanto as paredes colapsavam. As esculturas que anunciavam as escolhas do capitão sumiram telhado adentro sem qualquer som e foram tragadas pelo fogo que varria o que antes fora a cidade de Vulkermónt.  

Vinst, sem perceber que o seu único apoio esvaía-se em escombros chamejantes, caminhou até o beiral — as telhas e os caibros de madeira despencando de seu assento milenar à medida que os passos do capitão deixavam-nas para trás — e sentou-se lá, as pernas soltas sobre o mar de fogo. Observou com paciência as poderosas mandíbulas de Wirmyir se descerraram em uma profusão de dentes pontiagudos, unidos uns nos outros como que por ligas de metal onde corpos de outras eras acumulavam-se aos montes — alguns ainda gritavam!

O titã abocanhou o que sobrara da torre de uma vez e as pedras sumiram por completo em suas entranhas, retorcidas e incandescentes, consumidas pelo fogo dracônico.

O capitão nem notou o seu corpo desintegrar-se — ou mesmo a proximidade das mandíbulas quando percebeu-se girando pelo ar numa caverna tão grande quanto arcada. 

Seu mundo tornava-se mais claro e quente à medida que girava e girava; as pedras, lançadas a todas as direções pelo impacto, chocaram-se contra Vinst um cem número de vezes, quebrando seus ossos e esmagando seus membros, mas os olhos continuavam a ver o fulgor do fogo — e o cheiro tóxico e podre das milhares de vítimas agonizantes entre os dentes do titã!  

A claridade aumentou até consumi-lo por completo — até Vinst tornar-se um com ela. Já não pensava nem sentia, apenas via: via o fogo, que já não queimava, enfurecer-se contra tudo e, já não tendo nada mais para destruir, voltar-se contra si mesmo e dilacerar-se numa guerra que duraria uma vida inteira; não antes Vinst — os olhos que plainavam nas cavernas de fogo — percebeu a escuridão retornar: primeiro nas laterais, ganhando o fogo e a claridade, formando círculos concêntricos até fazer de seu rival algo frívolo e bruxuleante: um ponto minúsculo no mundo que voltava a ser escuro. 

Vinst, deitado nas masmorras da citadela, encarava a luz de uma vela.


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