Filhos das Ruínas

By pattsemedo

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• Vencedor do Wattys na Categoria de FICÇÃO CIENTÍFICA 2019 • "Após a Grande Guerra, não ficou nada mais do... More

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Capítulo Bónus
*Capítulo Bónus*AMRIEL

*Capítulo Bónus* KAI

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By pattsemedo

* ATENÇÃO: Este capítulo não é continuação do capítulo 30. É um capítulo bonús, que realmente teve lugar semanas antes do ponto em que nos encontramos na história.


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– Sabes, miúdo, esta não é a primeira vez que me acorrentam. E, ao contrário de ti, posso ficar aqui uma eternidade. – Um sorriso provocativo desenhou-se nos lábios do kakoi.

Kai avançou, mais uma vez, sobre ele e deu-lhe um soco. Sentiu os nós dos seus dedos latejarem depois do golpe. Não estava a chegar a lado algum. Já ali estavam há mais de três horas, e ele ainda não lhes tinha dito nada com relevância para eles. O seu ombro reclamava da força exercida, o seu estômago de fome e os seus olhos de cansaço. Acreditava que até o prisioneiro encontrava-se cansado, embora estivesse a manter a fachada que tudo estava a diverti-lo.

– Isso não passa de um eufemismo.

O kakoi semicerrou os olhos. – Quando me soltar, criança...

– Deixa-me adivinhar. Quando te soltares, irás fazer-nos sofrer por cada segundo? – Kai seguiu a voz, embora soubesse quem era. Reconhecê-la-ia em qualquer lado.

Annaleah, encostada a um dos cantos do armazém, analisava as suas unhas, como se tudo o que estivesse a acontecer não fosse de grande importância para ela. Ele estava tão absorvido pelo seu cansaço que nem deu por ela a entrar.

Apesar da sua diminuta altura, Kai sabia que a rapariga era muito mais forte do que parecia. Muito magra, com os maiores olhos azuis que alguma vez vira em alguém, já lhe salvara a vida incontáveis vezes. Os anos passados a seu lado a lutar faziam dela a pessoa em quem ele mais confiava. Depois do seu irmão, Aidan, claro.

Obrigou-se a tomar atenção ao que estava a acontecer ao seu redor. Era precisamente por causa de Aidan que tinham aquele kakoi à sua frente, acorrentado a uma cadeira. Sentiu um arrepio inequivocamente a subir-lhe a espinha. Precisavam de descobrir algo. Ele era a sua última oportunidade para descobrirem o paradeiro do irmão.

O prisioneiro soltou uma gargalhada. – Contigo, farei muito mais do que isso. É uma promessa.

– Espero que tenhas aproveitado bem o teu milénio, depois de teres vendido a tua alma aos demónios – Annaleah ripostou.

O conhecimento geral era o de que ninguém sabia ao certo como os kakoi se tornavam neles mesmos. Somente se sabia que quando uma criança nascia com os olhos escuros, oito anos depois ela iria ser levada pelo exército kakoi para o lugar mais protegido de toda a Cidadela – o Quartel. Dez anos depois, essa criança iria sair, mas completamente modificada e do lado do Estado. Porquê somente crianças de olhos escuros? Ninguém sabia. O Presidente fazia questão de encobrir bem o que ali dentro se passava.

Kai, porém, sabia identificá-los e matá-los. Aliás, tanto ele como a rapariga sabiam bem o que estava à sua frente.

– Isso é tudo inveja, rapariguinha?

Annaleah, de olhos fixos no prisioneiro, cuspiu no chão. – Vocês metem-me nojo.

Kai soube que estava na altura de intervir.

– Há cerca de oito meses, vocês invadiram uma aldeia e mataram todos os habitantes, menos um. Um rapaz alto, com uma cicatriz na sobrancelha, cerca de dezanove anos. Onde é que ele está agora?

Os olhos negros do kakoi saltaram entre ele e a rapariga. Havia algo na sua expressão que lhe indicou que sabia do que estava a falar-lhe. Uma centelha de curiosidade sobre o assunto, nada mais do que isso.

Os segundos passaram, e não houve qualquer resposta.

– Porque o levaram somente a ele?

– Quem é o rapaz para ti? – A voz do kakoi saiu arranhada. Estava a ceder ao cansaço.

Kai olhou com agrado para o seu trabalho. As correntes eram de prata, o que não dava muita margem de manobra. Ele só conseguia imaginar a agonia em que o kakoi dever-se-ia encontrar.

– Eu fiz-te uma pergunta primeiro.

– Não te consigo responder a algo que não sei, humano.

Kai abanou a cabeça. – Se há algo que eu detesto mais do que mentiras, é chamarem-me humano com esse tom de desprezo.

Da cintura, retirou a athame deixando a lâmina transparente ser iluminada pela pouca luz que os circundava. O cabo era de prata com um toque familiar na mão de Kai. Desde pequeno que empunhava aquela arma. Era tudo o que lhe restava dos pais, que nunca conhecera.

Sem demoras, colocou-a na fogueira improvisada, que anteriormente tinham acendido, e deixou que a lâmina sugasse a sua energia. Quando achou que estava pronta, aproximou-a do rosto do monstro. Viu o medo a espelhar-se neste antes de lhe encostar à bochecha a lâmina a arder. Um grito gutural saiu da garganta do kakoi enquanto ele se contorcia nas correntes, tentando afastar-se da lâmina fogosa.

– Vou perguntar-te só mais uma vez. Para onde levaram o meu irmão?

O prisioneiro ergueu o rosto. Uma linha de sangue quase negro corria pelo seu nariz e boca.

– Irmão? – Os seus olhos voltaram a saltar entre os seus dois captores, impossíveis de esconder incredulidade. – Não pode ser. Disseram-nos que a família dele estava toda morta.

– Quem vos disse isso? – Foi Annaleah quem perguntou. A sua voz estava mais próxima. Conseguia senti-la próxima das suas costas, no entanto não olhou para trás. O seu olhar estava preso no kakoi, seguindo cada palavra dita por ele, cada respiração sua. Era o tudo ou nada. Contudo não tinha sido preparado para o que lhe foi dito de seguida.

– Ele, o próprio Aidan.

Kai sentiu-se a perder o chão, confuso.

– Mais uma mentira? Não te mostrei já o que acontece quando me mentem? – Raiva tomou-lhe conta do corpo.

– Faz comigo o que tu quiseres, mas eu não estou a mentir. Aidan disse-nos que a sua família estava morta.

– Porque diria ele isso? – Com cada segundo a passar, o seu coração saltava mais e mais no peito. Não entendia sequer como este ainda não se tinha despregado e saído a correr.

O kakoi olhou-o com uma expressão muito calma. A expectativa tornou tudo mais insuportável. Kai sentiu-se a ficar doente. Havia algo que lhe estava a escapar, algo que ele não sabia e que estava a divertir o seu prisioneiro. Procurou por Annaleah em busca de ajuda, mas também ela estava focada no que o kakoi diria a seguir.

– Vocês realmente não sabem? – O olhar negro saltou da rapariga para o rapaz, focando-se, por fim, exclusivamente no último. Um sorriso de escárnio apareceu. – Aidan foi connosco de livre vontade.

O choque veio como um murro no estômago para Kai. Por momentos, não ouviu nada do que continuou a ser dito. Sentiu Annaleah a atravessar o seu caminho e aproximar-se do kakoi. A athame na sua mão desapareceu. Pouco depois, ouviu gritos. Contudo, nada disso importava. A sua mente tinha desaparecido dali.

Depois da Grande Guerra, a civilização foi divida entre duas parcelas – quem estava na Cidadela e os que por pouco conseguiam sobreviver nas Ruínas. Dentro dos muros salvaguardados da Cidadela, todos os que lá viviam, tinham em sua posse abundância. Enquanto que para lá desses muros, era a selvajaria. Foi nesse mundo que Kai tentou educar Aidan após o encontrar perdido e órfão como ele. Aidan tinham somente quatro anos. Escondendo-se de noite e treinando-o de dia, conseguiu fazer do seu irmão uma arma – alguém capaz de matar qualquer kakoi que se atravessasse à sua frente, mesmo com a tenra idade. Kai era excelente com armas, e possuía uma força absurda para um rapaz normal, porém o seu irmão excedia-o em todos os níveis, mesmo sendo dez anos mais novo.

O rosto de Aidan apareceu na sua mente. Nesse mesmo instante, algo nele doeu. Há oito meses, o local onde fizeram residência, uma aldeia de resistentes, na periferia da muralha da Cidadela, foi atacada. Kai e Annaleah tinham saído para caçar ao passo que Aidan, nesse dia, decidira ficar para trás.

Ainda conseguia visualizar com todos os detalhes a destruição do lugar aquando retornaram. O pânico provocado pelo medo da morte de Aidan assolou-o como algo que nunca tinha sentido na vida. Durante semanas, pensaram que ele estava morto. Até cederem-se a ouvir os rumores que o exército kakoi tinha na sua posse um humano, um rapaz de dezanove anos com uma cicatriz na sobrancelha, com um poder sobrenatural. Diziam que ele era a encarnação do verdadeiro kakoi. Só podia ser ele, Aidan.

Desde então que o procuravam.

Acordou dos seus pensamentos para encontrar a rapariga a cortar o peito do seu prisioneiro. Dor e agonia desenhavam-se no rosto já tão marcado pelo ódio. O cabelo cor de cobre colava-se à testa devido ao suor.

– Isso é impossível, é mentira. Aidan tinha um ódio maior a vocês do que nós os dois juntos – a voz, habitualmente melódica de Annaleah, encontrava-se dura. – Diz-nos onde ele está.

– Mesmo que quisesse fazê-lo, não posso. Não sei para onde o levaram.

– Não acredito numa palavra.

Annaleah preparava-se para mais um golpe de tortura, porém Kai impediu-a tocando-lhe no ombro. A rapariga olhou para ele, surpresa pela interrupção. Por momentos, sentiu-se desorientado. Não conseguia imaginar que o kakoi estivesse a dizer a verdade. No entanto, havia uma pequena parte de si que se questionava. Será que era isso que tinha acontecido?

Kai gostava de acreditar que ele era a pessoa que melhor conhecia Aidan, no entanto, todos nós temos pequenos segredos. E se o segredo do seu irmão fosse esse? Sendo sincero, Aidan nunca fora completamente normal. Mas o próprio Kai também não. Neste mundo, inundado pelo desespero, quem realmente o é?

O seu estômago deu a volta, por falta de alimento e porque começava a sentir-se enjoado. De certa forma, era bom sinal não ter comido ainda. Deduzia que estaria a vomitar tudo neste momento, se tivesse algo no estômago.

O seu rosto contorceu-se com o cansaço. Estava claro que o kakoi à sua frente não tinha nada mais para lhes dizer. Teriam de arranjar outra solução, outro caminho.

Kai aproximou-se tanto do monstro que era capaz de sentir a sua respiração imunda no seu rosto.

– Suponhamos que tens razão. Qual a razão para Aidan fazer isso? – Questionou. A energia começava a fugir-lhe do corpo. – Qual o vosso interesse nele?

O kakoi abanou a cabeça.

Kai sabia que este não era de uma patente alta quando o capturara. Dava para ver pelas condições em que o encontrara. Cada vez mais encontravam mais kakoi assim. Lamentou, nos seus pensamentos, as mortes que levaram a que eles se tornassem em coisas semelhantes à que se encontrava à sua frente.

– Há possibilidades de ele estar na Cidadela?

– Talvez, sim.

Kai disferiu mais um soco sobre ele. – Isso não é uma resposta.

– Não sei, mas é muito provável.

– O Presidente, onde está ele?

O rosto do prisioneiro tornou-se ainda mais pálido. Os seus olhos pretos arregalaram-se.

– Sim, nós sabemos mais do que vocês pensam. – Desta vez, foi Annaleah quem falou. – Sabemos que nestes últimos dois meses, ele não tem estado na Cidadela. Mas isso está a ser encoberto, porquê?

– Era preferível que não soubessem de nada, para vossa segurança.

– Agora estás preocupado com a nossa segurança? – Havia troça na voz dela.

– Claramente mais do que vocês.

Kai deu um passo em frente. – Que experiências fazem vocês no Quartel?

O kakoi encolheu os ombros, indicando que não ia falar.

Bastou a Kai olhar para a irmã. Lentamente, ela estendeu-lhe a athame. Kai sentiu o cabo quente na sua mão. Por segundos, ficou concentrado a olhar para a arma. O kakoi já não sabia mais nada de relevante, nada mais que os pudesse ajudar. Ou pelo menos, não ia falar. Determinado, guardou a arma na cintura e voltou-se para o seu prisioneiro.

– Parece que não tens mais uso para nós, homem invencível.

E, com um único movimento de força extrema, arrancou-lhe a cabeça.


Este é um capítulo muito especial. Foi o primeiro que escrevi e que deu asas a toda esta história. ele já tinha sido aqui publicado, mas decidi trazê-lo novamente, visto que neste momento da história, este flashback, faz-vos muito mais sentido. 

Para os leitores "fantasmas", irei amar-vos também se puserem a estrelinha quando lêem e gostam, mas ainda assim adoro-vos por sequer entrarem no primeiro capítulo e chegarem asté aqui.

Este capítulo é dedicado à pessoa que não me deixa desistir, à minha "editora". Que calha também ser uma das melhores pessoas que conheço. E à pessoa que me incentiva a escrever sempre mais.

Não se esqueçam da estrelinha.

Atenciosamente,

até ao próximo capítulo,

a autora.

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