VIRMÍRIA I {REVISÃO}

By Antares94

3.1K 497 589

VIRMÍRIA I {Capítulos do I ao XX revisados} -------- Vinst da Domere é o capitão do Viúva do Kai, às ordens d... More

MAPA I: O Mundo Conhecido
MAPA II: Os Reinos da Noite
MAPA III: A Região dos Vulkers
I - VULKERMÓNT
II - O MEDALHÃO
III - TÚLINVER
IV - O CASTELÃO
V - O ATAQUE DAS SERPES
VI - PREÇOS E PRAZOS
VII - O COVIL
VIII - BASTIÕES
IX - ENTRE VIELAS
X - JAULA DE MARFIM
X.I - A HISTÓRIA DE HÁJEN
XI - VVIDËV KAIS
XI.I - INQUIETAÇÕES
XII - NO MAR DE GELO
XII.I - ELDER SE EXPLICA
XIII - CULPA
XIII.I - O JURAMENTO
XIII.II - A CIDADELA
XIV.I - UM CONVITE
XIV.II - IMVOLK
XIV.III - RELATOS DO SARHÁJO
XV - O MAGÍER RETORNA
XV.I - A VIAGEM DE RAËRN
XVI - STEENSARK
XVI.I - ÚLT-TRARK
XVII - COLINA ABAIXO
XVIII - CALENDÁRIOS CÓSMICOS
XVIII.I - ANDERN'MÚN
XIX - A VELARIA DE VULKERMÓNT
XIX.I - TEMPLO DE GUERRA
XX - O HAXEN FERIDO
XX.I - PERTURBAÇÃO
XXI - A TORRE MAGÍERA
XXIII - A PARTIDA DOS VULKERS
XXIV - O INVERNO NOS REINOS DA NOITE
XXV - A NOITE SEM LUAS
XXVI - A MARCA DA SOMBRA
XXVII - A PRIMEIRA FLECHA
XXVIII - O CAPITÃO DESPERTA
NOTAS SOBRE VIRMÍRIA I
NOTAS SOBRE VIRMÍRIA II.I

XIV - A SUSPEITA DO ACÓLITO

56 12 17
By Antares94

Vinst não soube bem o que o acordou, se foram as badaladas do sino ou as batidas à porta, mas decerto se não voltou a dormir no curto intervalo após despertar, sem saber se sonhava e de olhos ainda cerrados, deveu-se somente à dor que lhe rachava a cabeça.

— Capitão? — chamou a voz da porta. — Capitão Vinst?

A voz lhe era conhecida de algum lugar, soube por reflexo, mas as memórias se perderam nos sulcos da mente dolorida enquanto o capitão vestia a roupa. Pôr-se de pé provou-se uma tortura desmedida, e voltou a sentar-se de imediato, amaldiçoando-se por subestimar o vinho do sul.

— Sim? Um— — interrompeu-se Vinst, massageando as têmporas. — Um minuto!

Tentou levantar-se mais uma vez — e mais uma vez voltou a sentar-se, a dor explodindo a mente. Na terceira tentativa teve mais êxito, e cambaleou até a porta, o semblante contraído e os olhos semi-cerrados. Do outro lado da porta estava Teriá, o jovem acólito do magíer de Vulkermónt, envolto na túnica arroxeada, surrada pelo uso e ostentando aqui e ali estrelinhas e meia-luas. Os olhos mostravam-se menos encovados agora, mas a íris negra e opaca ainda destacava-se no rosto pálido, emoldurado pelo cabelo desgrenhado e pelo gorro pontiagudo que caía-lhe pelos ombros. Teriá fez uma mesura breve.

— Capitão Vinst, muito me agrada vê-lo! Achei que tivesse partido com o Viúva, e quando soube do juramento, tive que vir vê-lo por mim mesmo — ao notar a expressão de dor no rosto do outro, iluminado por seu archote — os corredores daquele labirinto eram escuros mesmo pela manhã! —, Teriá perguntou: — Mas o que tem, capitão?

Vinst, a quem não agradava encenação ou qualquer coisa do tipo, deu alguns bons passos para trás e deixou-se cair na cama e afundou a cabeça nas mãos. O acólito compreendeu de uma vez e riu:

— Ora, capitão, dois odres de vinho e uma bela refeição, é o que posso ver, mas e quanto à água, nem tocou, como vejo, pois a jarra mostra-se transbordante, e um sopro seria o bastante para fazer a água escorrer até a cômoda — observou. 

— Dormi antes que pudesse pensar em bebê-la — defendeu-se o capitão.

O acólito deu a volta na cama e sacou do bolsinho da túnica um frasco de vidro; dentro agitava-se um pó ocre, que ardia sobre a luz do archote, e o acólito despejou-o na jarra e misturou por um tempo. Por fim, serviu-a na taça e levou ao capitão.

— Beba, capitão, e o incômodo passará em pouco tempo: tão pouco que vai querer ter algo do meu cicrômolo consigo aonde for — disse o acólito, e riu. — Vamos, segure e beba, capitão — pediu, e Vinst, ainda de cabeça baixa, forçou-se a pegar a taça e sorveu com alguma dificuldade seu conteúdo salgado como os umbrais. — Um pouco de ar fresco nos jardins vai ajudar, o que me diz? — perguntou o acólito, ao que Vinst assentiu.

Vinst seguiu o acólito sem dizer palavras, e, enquanto descia as escadas da torre, volta após volta, já sentiu a mudança de ares: o frio e o frescor do inverno, mesmo que amenizados pela iminência da pequena-primavera, ainda assim descoraram-lhe as bochechas um tanto, e foi somente na falta que Vinst percebeu o enjoativo e adocicado cheiro que impregnava o quarto trancado: queimara todas as velas-de-cheiro e incensos na noite e decerto devia parte do enjoo àquilo. O acólito era meia cabeça maior do que Vinst, e se aprumasse as costas arcadas pelos dias de leitura pesada e experimentos diversos, seria ainda maior. A cintura era envolta por um cinturão escuro, repleto de bolsinhos e algibeiras e de um lado pendia alguns frascos de vidro que tiniam com suavidade enquanto o acólito descia as escadas. 

Patamares seguiam patamares e pouco antes de postular a infinita sucessão de degraus, surgiu diante deles o longo corredor mal iluminado. Vinst não soube quantas vezes viraram à direita ou à esquerda, ou quantos bom-dias foram lançados aos serviçais que atravessavam-lhes o caminho, mas não deixou de sentir os olhares curiosos que os serviçais laçavam contra ele: o capitão cabisbaixo, o rosto coberto pelo chapéu negro de abas largas, cambaleante como uma mula recém liberta de sua carga, e que mais seguia o som dos passos do que via o acólito de fato. 

Não precisava ser um grande conhecedor da cidadela para saber que se aproximavam dos jardins: o vozerio e o resvalar de metal contra metal aumentavam à medida que os homens dobravam as esquinas. A portinhola — um recorte de luz no fim do corredor abobado —  o capitão reconheceu bem, bem como os guardas, os mesmos do dia anterior, ele notou, de capa verde dos vulkers e lanças à mão, que saudaram-nos com cortesia quando saíram para o patamar de guarda-corpos tomados por heras.

— Talvez lhe fosse necessário um ambiente mais calmo e sossegado, capitão, mas veja como a neve sumiu de nossos jardins e os brotos salpicam os gramados: isso há de fazer um homem doído são, capitão. Venha, desça comigo — chamou o acólito, e os dois seguiram pelos jardins apinhados.

Nos domínios dos jardins da cidadela, que se estendiam entre o pátio principal, ao sul, e a torre magíera, a norte, viam-se soldados e recrutas vulkers: os primeiros trajando a armadura esmaltada, a hágia negra esmaltada à placa de peito, e meio-elmo cônico e lustroso, de onde caia o pesado camal em cota de malha; os segundos, homens e mulheres simples, dados às enxadas, tecidos, à bigorna e martelo. Os membros deste último grupo eram fáceis de discernir, pois vestiam-se com seus gibões enfeitados, lavados e cerzidos para a ocasião especial do juramento, e tão logo deixavam o salão do trono, juntavam-se ao seu respectivo sor-de-arma e aprendiam com qual ponta da espada estocar ou e a posicionar a pena flecha na corda, e não no arco de madeira, como Vinst ouviu uma bela arqueira gritar para uma jovem camponesa. 

Três grandes carroças, fortalecidas com rebites de aço e puxadas por touros musculosos, aguardavam na extremidade norte, em frente a uma construção de planta octogonal e atarracada. O telhado fora substituído por um círculo de ameias simples. As paredes robustas eram marcadas por pedras grandes e cinzentas e poucas aberturas maculavam-nas, mas as portas reforçadas estavam escancaradas. Soldados bem armados entravam aos pares e saíam carregando caixas pesadas em direção às carroças. O acólito adiantou-se em apontar o arsenal vulker, onde se armazenavam as armas confeccionadas pelos bélicos da cidade.

— Bélicos? — quis saber Vinst. 

— É como chamamos os ferreiros que empenham-se nos esforços de guerra, capitão — explicou. — Como todos os ofícios de Vulkermónt, têm sua própria guilda. Um braço menor da guilda dos ferreiros, há de se dizer, pois mesmo os que se especializaram nas técnicas de outros reinos viram-se desempregados em uma cidade como a nossa, onde as guerras são lembranças — doloridas como velhas cicratrizes, mas lembranças. Conheci um moço por nome Godorlim, que, à época em que cheguei em Vulkermónt, viajou para Këalia e aprendeu a confecção do escudo impenetrável, como aqueles homens os chamam. Encontrei o homem há algum tempo. Tinha o ombro direito mais alto que o esquerdo, como vê-se nos ferreiros, e parecia mais maligno do que antes — e essa é uma característica këali, o que me diz? — gracejou o acólito. — Godorlim deve estar bastante grato e honrado pela marcha contra Hájen, é o que digo, pois não mais presenteia seus concidadãos com panelas impenetráveis  — e riu alto.

Caminharam um tanto mais até os pomares, onde uma multidão de homens e mulheres vulkers treinava estocadas com lanças, sob o olhar atento de um sor-de-armas, o líder dos lanceiros; numa outra parte, entre canteiros de ervas e a fonte das sereias, enfileiravam-se os novos arqueiros e, cada qual por vez, atiravam flechas contra os alvos presos ao paredão cinzento. Vinst observou o salão do trono além das árvores. Através dos vitrais coloridos pôde ver o trono elevado sobre o estrado, e nele sentava-se Hájer, o príncipe vulker, que aceitava, um a um, seus novos companheiros de armas. Os novatos reuniam-se próximo à entrada das masmorras, onde eram sortidos para os diferentes destacamentos: lanceiros, arqueiros, espadachins e retaguarda. Entremeando os recrutas iam e vinham serviçais vulkers, o avental alvo sobre as vestes e as bandejas elevadas sobre suas cabeças, e distribuíam grandes fatias de pão escuro, fritas em manteiga, queijo duro, tiras de carne salgada hidratadas com banha de porco e cornos de cerveja escura e fresca.

Vinst negou com um balançar de cabeça dolorido quando um moço não mais velho que Elder veio em sua direção, mas Teriá aceitou de bom grado e ambos sentaram-se numa pedra ao sol.

— Pode ser que esteja ainda sob o domínio da náusea a mal-estar, capitão — disse o outro entre goladas —, mas, se conheço bem meus reagentes, não tardará a desejar ter consigo três ou quatro bandejas dessas e talvez mais alguns cornos. E pão! — e deu uma boa mordida no pão, e a casca crocante salpicou-lhe as vestes.

— Talvez tenha mesmo razão sobre a comida, mas o mesmo não vale quanto ao álcool: deste quero uma boa distância por ora! — exclamou o capitão, enquanto preenchia o fornilho com o bom fumo gilderão que trazia consigo na sobrecasaca. A primeira baforada veio leve e doce, como havia de ser. O semblante do capitão logo suavizou-se e as dores foram esquecidas. — E quanto às carroças, aonde vão? — perguntou, quando as três carroças pesadas passaram diante dos dois em direção ao pátio.

— Estão a caminho do Campo de Këalut, acima do portão norte — respondeu o outro, limpando a garganta com a cerveja. — Já não usávamos nossos campos de treinamento há uma dezena de anos, pelo que me disse o magíer, e levou alguns dias e uma boa centena de machados para limpá-lo e uma outra boa quantidade de piloeiros para planá-lo e um tanto mais de construtores para erigir as casernas de batalha. As árvores tomaram conta do que lhes pertence, sabe como é, capitão, e sua boa madeira foi usada para novas lanças, arcos e flechas. Os pavilhões e cabanas já haviam sido montados quando cavalguei por lá na manhã de ontem, e de um quilômetro pode-se ver as flâmulas vulker drapejando sobre as árvores — algo belo de se ver!

— Disse-nos na Jaula que não participaria da campanha — mantêm o pensamento? — perguntou Vinst.

— Pois se engana quanto às minhas palavras, capitão. Disse, sim, que não participaria como um guerreiro, pois não o sou! Mas meus serviços serão apreciados por nosso príncipe em campo de batalha. Há de saber, capitão, que tenho vasto conhecimento nas propriedades naturais de ervas e substratos — talvez o tenha notado, pois já não vejo a careta de dor estampada no seu rosto! 

Vinst assentiu. De fato a dor sumira, mas o enjoo ainda restava em alguma parte sombria do estômago: a mera ideia de voltar àquele quarto abafado na torre, impregnado com o odor de mil velas-de-cheiro, fazia as dores ameaçarem de novo. Teria que torrar todo o meu fumo antes que o cheiro desaparecesse, pensou Vinst consigo.

— E é assim que lutarei essa batalha, — concluiu o outro. — Acaba de chegar um grande sortimento de folhas-de-sol dos herbalistas de Massena que ordenei já há muito: temi que tivessem aportado em Hoxgarta e algum dignatário skaal os tivessem prendido ao ver o destino e a natureza da carga. Ou que tivessem naufragado nas costas pedregosas de nosso reino. Ou algo pior, capitão. O que digo é que terei grande sortimento de frascos de fogossanto para os homens do príncipe em uma quinzena e um homem ferido — gravemente ferido por uma flecha ou com o ombro decepado por uma espada! — poderá rir de novo após um gole daquela substância. E assim lutarei, capitão! — exclamou.

— Nem que as nagas tivessem deixado minha tripulação em frangalhos ousaria aportar em Hoxgarta ou qualquer cidade skaal com um carregamento para Blorijke — admitiu o capitão, soltando fumaças espirais do nariz. Após uma breve baforada, continuou: — É uma forma honrosa de lutar, se quer saber o que penso. É um traço de virtude emprestar sua excelência às causas grandes, é como vejo.

Teriá moveu-se desconfortável sobre a pedra.

— É um pensamento tão aristocrático quanto belo o seu, capitão, e por isso falho — rebateu o acólito. — Olhe para aqueles homens, os que golpeiam o grande saco de feno sujo com as lanças sob o olhar atendo de sor Kandir: pensa realmente que darão sua excelência ao príncipe? 

Vinst não soube respondê-lo.

— A resposta é não — disse o acólito. — São camponeses e conhecem o arado tão bem quando o senhor conhece o timão, e os ventos a estibordo e calendários lunares: fazem seu melhor trabalho nos campos, nas plantações de milhete, batatas e centeio. Sua excelência nos campos é tamanha que nunca morremos de fome ou nos entediamos com nossa comida cá em Vulkermónt e também temos o bastante para exportar para outras cidades maiores, como Jennár e Lågen, onde novas profissões ocupam as mentes e os homens têm pouco ou nenhum tempo para o plantio.

— Quem é o aristocrata aqui? — zombou o capitão, entre uma baforada e outra. — Diz que um home do campo pertence a um arado, é isso?

— Digo que  aqueles homens viveram para o arado, e diga-me, Vinst, se não foi a experiência de uma vida que o tornou um exímio capitão? E quanto a Elder, o bom imediato: nasceu com cabeça de navegante ou o quê? — perguntou, e ele mesmo respondeu: — Não! Uma mente assim é forjada nos dias de navegação e nas tempestades mais terríveis, é como afirmo sê-lo: também estes homens tiraram grande proveito das cheias do Túlinver, estiagens, monções, pragas e farturas. Fizeram-se homens do arado e tecelões e ferreiros, o que quer que fizessem na outra vida: antes das serpes invadirem Vulkermónt e os vulkers se decidirem pela luta. 

— Então deveriam voltar aos arados e deixar que os cavaleiros e sores-de-armas lutem essa batalha?

— Engana-se: isso é aonde a sua lógica nos levaria, capitão. Agora são homens de armas, é o que digo. Levou-me algum tempo para aprender a viver como um vulker e para entender de suas maneiras e artes, e hoje não sou mais um grenão que cresceu em Vulkermónt, e sim um vulker que nasceu na Grênia. E se me pergunta onde jaz a virtude para um vulker, nada de excelência me viria à mente, posso afirmá-lo, mas muito antes trata-se em como se usa o que se tem: menos sobre o quão longe um olho pode ver e mais sobre o que se faz com a visão; ou o quão afiado é a audição de um homem em oposição ao que ele decide ouvir. — O acólito abaixou a voz a um meio-tom rouco, olhou por cima dos ombros e disse: — Talvez seja esse, e não outro, nosso maior problema agora, capitão.

Vinst olhou por sobre os ombros, curioso, e perguntou-se como pelos umbrais, na iminência de uma batalha de grandes proporções, a definição de virtude e todos aqueles conceitos poderiam ser o problema de agora, mas manteve a boca fechada, ao que o acólito continuou, não menos sombrio:

— Talvez tenha me achado gentil e amigável por tê-lo visitado hoje, capitão, e talvez pare por aí: pois saiba que não o faço por me afeiçoar ao senhor apenas, é o que digo, mas há algo mais.

Vinst não gostou nada de como aquilo soava.

— Diga-me, Teriá — pediu Vinst, e pôs o cachimbo de lado.

— Tem olhos aguçados e a mente mais aguçada ainda, capitão, foi o que percebi em nossa breve conversa naquela noite, e se posso acreditar em metade dos elogios que o jovem imediato teceu a seu respeito, ainda assim é um homem grandioso para uns, mas perigoso para outros. — A voz desceu agora a um sussurro. — Fez a pergunta certa naquela noite, capitão. Uma pergunta tão certa quanto perigosa. Uma dessas perguntas que não se faz por aí, inadvertidamente.

— Não sou dado às adivinhações e enigmas, acólito — Vinst percebeu que também sussurrava. — Diga-me, é o que peço!

— Não acha curioso que as serpes cheguem justo quando o magíer se ausenta? 

Essa pergunta — lembrou-se Vinst. — O que quer dizer com isso? Suspeita de alguém? 

— Suspeito de muitos; de todos, potencialmente, é como vejo — admitiu o outro. — Divido as suspeitas do magíer, e a reforcei no período de sua ausência, e por isso quis vê-lo o mais rápido possível: não sei quais são seus planos aqui, capitão, e a conjuntura das coisas me faz vê-lo como inocente e despretensioso em todo caso, por isso não me furto em alertá-lo para que mantenha os olhos bem abertos e saiba aonde seus pés o levam.

— A quem interessa que os vulkers marchem contra Hagen, afinal? — quis saber Vinst.

— Homem de perguntas afiadas. Pois não perca de vista essa pergunta, capitão! A mim foi aconselhado o mesmo, e passo adiante — disse o acólito, sinistro; mostrava-se mais curvado em sua túnica do que antes, e os olhos ágeis rumavam à esmo, como se desconfiasse das copas frondosas acima deles, apenas para encontrarem novamente os do capitão: olhos negros e opacos, Vinst percebeu, insondáveis por natureza. — A quem?, me pergunta. A muitos, volto a responder, mas mais não ouso falar mais antes de trocar algumas palavras com o velho magíer. 

— Já disse que não sou dado a enigmas — Vinst estava perdendo a paciência.

— Não posso dá-lo respostas que não tenho, mas as dúvidas já são o bastante para inundar a cabeça de um homem e dá-lo o que pensar antes de dormir — rebateu o outro. — Vulkers são o que se mostram ser e, tão certo quanto isso, homens de outras terras têm interesses de outras terras, é como é. Esses são os dois tipos de homens que existem para nós e é assim que devem ser observados.

— Somos ambos de outras terras, Teriá. Eu de Vvysenia e você, da Grênia. Temos belos jardins, pradarias verdejantes, uma frota invejável a outros reinos marítimos e boa caça em minhas ilhas. Vosso arquipélago, mais vasto e rico que o meu, é banhado pelo bom sol, tem grandes cidades, boa pesca e do solo salgado e calcário brotam especiarias raras e únicas. Soma-se isso à hegemonia no Estreito de Grênia e aos altos pedágios que cobram aos navios que seguem em direção à Gilderônia, ou ao Canal de Trínia, e tem-se um reino disputado e complexo. Mas o que têm os vulkers que diz respeito a outros homens de outras terras? Talvez seja apenas a velha batalha pelo poder entre reinos escuros, frios e distantes, e nada mais, é como encaro. Não me vem à mente o que há na região do Vulga que não há em parte alguma do mundo.

— Vulkers, capitão — os olhos dele brilharam.

— Não compreendo — admitiu Vinst.

— Eu tampouco, mas peço desculpas por, como disse, falar por meio de de enigmas. São como as parábolas que o magíer insiste em usar, e Elder que não me deixe mentir quando digo que temos mais de nosso mentores do que de nós mesmos na cabeça — e sorriu para Vinst. Com a voz de volta ao bom som, empertigou-se em sua túnica arroxeada, coberta por uma trama gasta de estrelas e pequenas luas, e aconselhou: — Talvez conversemos a respeito disso em outra hora, capitão, quando as ideias forem mais claras e ordenadas, mas por ora leve os meus avisos em consideração — e lançou-lhe uma piscadela e levantou-se, ao que o capitão fez o mesmo. — Temo estar um tanto atrasado para as audições às dez no porto — o senhor sabe o quanto o bom exército dos vulkers depende dos meus frascos de fogossanto —, mas não posso deixar de perguntá-lo uma última coisa; algo que me intriga mais do que parábolas e enigmas, capitão: por que decidiu abandonar os nautos e lutar?

Abandonar é uma palavra muito forte, Vinst pensou, e não pôde deixar de mostrar o incômodo. Era a tal culpa que vinha dos cantos mais recônditos das estranhas e subia pela espinha como dedos gelados: uma sensação de impotência e desespero, e se o vinho e o mal-estar após o exagero tinham de positivo eram fazer das dores do corpo mais pujantes do que aquelas da alma. 

— Desejo escrever minha própria história — disse Vinst com sinceridade.

— Por um desejo — replicou o acólito. Vinst não soube se foi uma pergunta ou observação, e limitou-se a assentir. O rosto de acólito tornou-se inexpressivo, mas os seus olhos sondaram-no com um misto de pena, incredulidade e talvez raiva, Vinst não pôde dizê-lo. Sentiu-se envergonhado e desviou o olhar. — É um bom homem, capitão Vinst, e fico feliz de estarmos do mesmo lado — e foi-se. 

Continue Reading

You'll Also Like

19.4K 2.1K 26
Mystic Falls foi fundada em 1860 quando um Lockwood, um Forbes, um Fell, um Gilbert e um Salvatore se juntaram para assinar a carta do distrito. Aco...
33K 2.7K 58
Filha de Anfitrite e Poseidon, criada como uma mera humana adotada por pais ricos. Maya sempre se sentiu diferente, tinha de tudo porém a vida que l...
35.1K 2.2K 26
De Bastarda Velaryon a Rainha dos Sete Reinos. A bastarda mudaria todo o jogo do trono de ferro. Bela como uma deusa e brutal como o fogo de um draga...
3.4K 525 27
Jacaerys Velaryon era o primeiro filho da Princesa Herdeira, Rhaenyra Targaryen, e seu marido, Laenor Velaryon. Embora, segundo muitos, se parecesse...