Levei a mão à boca para tapar o que deveria ser o milionésimo bocejo que eu dava naquela manhã. O pior é que eu vinha dormindo como uma pedra durante as últimas semanas, várias horas por noite. Mais até do que o realmente necessário, do que eu deveria, diante de tudo o que tinha que fazer. Mas com a maratona de assistir as aulas, ajudar nos preparativos do jogo, estudar para os N.I.E.M.s e fazer as rondas era de se esperar que eu chegasse ao começo da noite cansada. O problema é que eu me sentia exausta, não só a noite, mas durante todo o dia. O fato de Pansy e Astória terem feito da participação no Comitê apenas uma desculpa para se aproximar de Draco e infernizar as nossas vidas também não ajudava em nada. Tentei deixar aquilo de lado, ponderei comigo mesma que estava apenas tendo uma possível crise infundada de ciúmes, repeti diversas vezes o mantra "eu preciso aprender a confiar no meu namorado". Mas quando até mesmo Luna passa a se sentir incomodada com alguma coisa, é hora de repensar as estratégias.
O problema é que confrontá-las era tudo o que eu não podia fazer, porque era exatamente o que elas esperavam que eu fizesse. Por isso, decidi fazer o possível para continuar ignorando as duas - por mais que minha cabeça doesse de raiva, minha mão coçasse de vontade de agir e a varinha pesasse como ferro incandescente no bolso das vestes, quando elas surgiam lançando olhares lânguidos e frases sussurradas para Draco - até depois do jogo comemorativo e tudo finalmente chegaria ao fim. Encarei meu café da manhã, ovos mexidos e torradas ainda intocados no prato. O copo cheio de suco de abóbora. E meu estômago se contorceu, recusando mais uma vez a oferta. Soltei um suspiro exasperado e abaixei a cabeça nos braços, sentindo como se um Dementador tivesse sugado, ao invés da minha felicidade, toda a minha energia vital. Alguém colocou a mão no meu ombro e me levantei apenas o suficiente para ver uma cascata de cabelos loiros sentar-se ao meu lado.
- Indisposta de novo? - Luna perguntou baixinho.
- Se esse jogo não chegar logo... - gemi, terminando de endireitar o corpo. - não sei o que vai ser de mim.
- Faltam apenas dois dias.
Acho que era para soar complacente e incentivador. Mas ela mal conseguia conter a animação. Era exatamente daquela maneira que eu devia estar me sentindo, que eu queria estar me sentindo, só que não havia espaço em mim para mais nada além de cansaço e sono. Tentei sorrir, mas pelo olhar no rosto dela, o gesto pareceu preocupar Luna. Então, virei para o outro lado. E vi que Draco entrava no salão, acompanhado por Astória. Baixei a cabeça de novo, sentindo-me ainda mais derrotada. Um calafrio subiu pela minha espinha quando escutei os passos se aproximarem de mim.
- Espero que tenhamos nos estendido definitivamente, Astória. - a voz dele parecia verdadeiramente irritada. - Não quero ter que falar sobre isso de novo.
A garota bufou e mesmo de olhos fechados eu sabia que ela havia batido com o pé no chão e cruzado os braços na frente do corpo, encarando Draco - desafiando-o, como a bela menina mimada que era - antes de se virar para sair. O rapaz loiro cumprimentou Luna enquanto se sentava do meu outro lado. Senti que ele havia colocado alguma coisa na mesa, mas o desânimo foi maior que a curiosidade.
- Desculpe por isso.
A frase era para mim, eu tinha certeza. Mas respirei fundo, mantive os olhos fechados e a cabeça baixa.
- Hermione? - ele chamou triste. - Você me ouviu?
Estava ponderando se levantava a cabeça ou mesmo se queria falar com ele, quando Luna disse.
- Ela disse que só está cansada. Mas, na verdade, acho que está ficando doente.
Soube que a loirinha corvinal havia chamado, silenciosamente, a atenção dele para o meu prato ainda cheio quando Draco passou o braço pelos meus ombros e puxou-me delicadamente.
- Hermione... Ela está mesmo pálida. - constatou ao me olhar.
- Uma passada na enfermaria antes da aula não faria mal.
- "Ela" está bem aqui, ao lado de vocês. - olhei de um para o outro. - E acreditem quando "ela" diz que só está cansada.
Os dois trocaram um olhar desconfiado e Draco revirou os olhos.
- Vamos acreditar, por enquanto...
- Mas estamos de olho em você.
- Desde quando vocês completam as sentenças um do outro?! - eles fizeram menção de começar a falar ao mesmo tempo e achei melhor interromper. - Parem, estão começando a me assustar. - um embrulho à frente de Draco chamou minha atenção e percebi minha oportunidade de sair do foco da conversa. - O que é isso?
- Algo que preciso devolver ao Harry. Por falar nisso, onde ele está?
- Atrasado. Assim como Nev.
Quase como que em resposta à pergunta de Draco, uma voz conhecida ecoou no corredor. Estávamos na ponta da mesa, próximos à porta de entrada e mesmo com o burburinho de vozes e talheres no salão consegui distinguir o tom irritado de Gina. Eles surgiram na soleira, a ruiva discutia com Harry, enquanto Neville tentava apaziguar os ânimos. Ronald caminhava ao lado deles, ignorando a cena.
- Eu disse que ia pensar... pensar. Não me sinto segura voando ao lado dele. - ela se deixou cair no banco à nossa frente.
Ronald se serviu como se nada estivesse acontecendo e ficou claro que estava ignorando a discussão porque era o motivo dela.
- Gina, ele é seu irmão.
- Ele só se lembra disso quando convém.
- Essa doeu. - Neville murmurou.
- Gina, seja razoável. - Luna argumentou e esticou a mão para segurar a de Neville do outro lado da mesa. - Ele foi sorteado, como todos os outros jogadores das casas. Onde fica nossa credibilidade se o excluirmos simplesmente porque você não quer voar ao lado dele?
- Eu não me importo!
- Sério? - Harry lançou um olhar de descrença à noiva.
- Não. E é por isso que estou tão brava. - ela bufou. - Achei que podia confiar em você. - ela apontou o dedo para Draco, fazendo surgir uma ruga na testa do loiro. - Como pode colocar o nome dele no sorteio?
- Não é minha culpa. Ele é o goleiro do time da Grifinória. Eu não tive escolha. E com tanta gente concorrendo, como eu ia podia adivinhar que justamente ele seria sorteado?
- Odeio esse seu novo eu, tão honesto e razoável.
- É claro que odeia. - ele riu.
- Sabe, me pergunto onde foi parar o Draco que todos nós amávamos? - a voz de Ronald não tinha a menor inflexão, nem um mínimo sinal de emoção. - O cara mimado, egoísta e traiçoeiro, ca-
- Morreu junto com o único homem que ele respeitava até então. Foi atirado da Torre de Astronomia ao lado de Alvo Dumbledore.
Senti todo mundo na mesa prender a respiração. Gina piscou algumas vezes, tentando ter certeza de que havia escutado mesmo aquelas palavras. Essa era apenas mais uma das centenas de culpas que Draco carregava - a morte de Alvo Dumbledore. Ele sempre preferiu o silêncio quando se tratava do que aconteceu antes da guerra, das coisas que foi obrigado a fazer. Apesar de ter que assistir o sofrimento dele quieta e calada, aprendi a aceitar a escolha. Parecia-me que dizer em voz alta aumentava o tamanho da dor, escancarava a verdade e, claro, a culpa.
- Então, Harry. - ele recomeçou, quebrando o silêncio constrangedor e doloroso. - O pessoal que está trabalhando na reconstrução da mansão achou isso e eu queria te devolver. - Draco empurrou o pacote que estava sobre a mesa para o menino que sobreviveu.
- Você está reconstruindo a Mansão Malfoy? - não queria soar apavorada, decepcionada ou, mesmo, tão surpresa. Mas as palavras escaparam da minha boca sem permissão ao mesmo tempo em que lembranças nada agradáveis inundavam a minha mente. - Est-
- Ah. Meu. Merlim! - Gina interrompeu o que eu ia começar a dizer. - A Capa da Invisibilidade.
- Eu pensei que ela estivesse perdida pra sempre. - espantou-se Neville.
- Está inteirinha! - comemorou Luna.
- Eu também achei. E sim, não tem nem um rasgo. - Harry parecia estupefato. - Obrigada, Malfoy.
- Sem problemas.
Enquanto todos apreciavam a capa de Harry, eu só conseguia pensar nas palavras de Draco: O pessoal que está trabalhando na reconstrução da mansão..., ecoando na minha cabeça. Aquele lugar me dava calafrios. Estive lá apenas duas vezes, por algumas horas, e não conseguia sequer me imaginar voltando. Se Draco tinha alguma pretensão com relação a nós e o cenário dos meus piores medos e pesadelos, eu precisava falar com ele.
- Draco... - ele fixou os lindos olhos cor de tempestade nos meus e senti a angústia que crescia dentro de mim suavizar.
- Ei pessoal! - Simas se aproximou com Dino ao seu lado. Acabando de vez com as minhas chances de começar uma conversa sobre o assunto da reforma. - Acho que sabem sobre... que nós...
- Que vocês tem um caso? Não me diga que assumiram para escola toda...
Os meninos riram, enquanto Simas e Dino fechavam a cara. Revirei os olhos para a piada de Draco. Algumas coisas não iriam mudar nunca.
- Ah, que fofo... - Gina entrou na zoação.
- Tá bom, já chega. - Dino cruzou os braços na frente do corpo e se virou para sair. O breve relacionamento que ele teve com Gina foi extremamente conturbado e o fato de ela e Harry terem assumido o que sentiam apenas poucos dias depois do término não ajudou em nada.
- Desculpe, Dino. - ela disse com sinceridade. - Sabemos do que vocês estão falando, ou melhor, o que vem fazendo. Então, o que isso tem a ver com a gente?
- Bem, queríamos convidar vocês para... sabe, participar essa noite. - Simas cochichou.
- Se McGonagall descobrir... - começou Harry.
- Sério? "Se McGonagall descobrir..."? - Gina colocou as mãos na cintura e encarou o namorado. - Sinceramente ainda se preocupa com isso depois de tudo o que já fizemos? Depois de todas as fugas e regras quebradas ao longo dos últimos sete anos?
O garoto que sobreviveu apenas deu de ombros antes de se virar para o colega de casa.
- Acho que apareceremos por lá.
- Ótimo. - Simas comemorou. - Vejo vocês depois do toque de recolher.
- Depois do toque de recolher. - repeti. - Por que eu não estou surpresa? - disse quando eles se afastaram.
- Queria mesmo que eles abrissem a Sala Precisa com todos os professores ainda circulando pelo castelo? Não acha que eles iam, tipo, desconfiar? - Gina argumentou. - Além do mais, temos a capa da invisibilidade de volta.
- Desculpe te decepcionar, Gina, mas não cabemos todos debaixo da capa da invisibilidade.
- Não, não cabemos. - ela me deu seu melhor olhar convencido. - Mas você e Draco tem permissão para andar pelo castelo depois da hora, são monitores-chefe. O Krum chega hoje e Harry e eu temos que recepcionar ele, então, também estamos autorizados a ficar fora da cama. Sobram apenas Luna e Neville, mas eu duvido que eles vão se importar de ter que se espremer embaixo dela juntos.
Neville engasgou com o suco de abóboras e Harry deu batidinhas em suas costas enquanto se segurava para não rir. Já a loirinha ficou da cor dos cabelos de Gina. Segurei a mão de Luna por sob a mesa e apertei, tentando transmitir algum conforto.
- Nem todo mundo é como você e Harry. Tem gente que ainda preza pela discrição e decoro...
- Isso lá é verdade. Algumas pessoas ainda preferem os quartos. - Draco disse.
- E outros simplesmente têm vergonha na cara. - completei já rindo da incredulidade estampada no rosto dela.
Juro, nunca me vi tão perto da morte. Mas o olhar assassino de Gina fazia um contraste cômico com os olhos arregalados de Harry. E isso me fez rir ainda mais. Até Ronald se permitiu um leve sorriso, que sumiu assim que a irmã desviou os olhos na direção dele. Já Luna ficou ainda mais vermelha, cobriu o rosto com as mãos e murmurou alguma coisa que eu consegui interpretar como "não precisava pegar tão pesado". Mas, a esta altura, minha barriga já estava doendo de tanto rir. E eu só consegui usar as últimas forças que me restavam para apoiar os braços na mesa e não cair do banco.
- Hermione, respire.
Draco me segurou pelos ombros e lançou-me seu olhar mais sério. Os lábios comprimidos em uma linha fina, a expressão composta e compenetrada. Tentei respirar fundo para me controlar, mas o único efeito que consegui foi emitir um guincho agudo - até meio assustador, eu diria - quando o ar saiu entrecortado pelas minhas narinas.
- Desculpe. - Draco disse para ninguém em especial, já quase sem conseguir se conter. E então, começou a rir também.