O Guarani (1857)

By ClassicosLP

46K 1.9K 108

Obra do brasileiro José de Alencar. More

AO LEITOR
PRÓLOGO
PRIMEIRA PARTE: OS AVENTUREIROS
I: CENÁRIO
II : LEALDADE
III : A BANDEIRA
IV : CAÇADA
V : LOURA E MORENA
VI : A VOLTA
VII : A PRECE
VIII : TRÊS LINHAS
IX : AMOR
X : AO ALVORECER
XI : NO BANHO
XII : A ONÇA
XIII : REVELAÇÃO
XIV : A ÍNDIA
SEGUNDA PARTE : PERI
I : O CARMELITA
II : IARA!
III : GÊNIO DO MAL
IV : CECI
V : VILANIA
VI : NOBREZA
VII : NO PRECIPÍCIO
VIII : O BRACELETE
IX : TESTAMENTO
X : DESPEDIDA
XI : TRAVESSURA
XII : PELO AR
XIII : TRAMA
XIV : A XÁCARA
TERCEIRA PARTE: OS AIMORÉS
I : PARTIDA
II : PREPARATIVOS
III : VERME E FLOR
IV : NA TREVA
V : DEUS DISPÕE
VI : REVOLTA
VII : OS SELVAGENS
VIII : DESÂNIMO
IX : ESPERANÇA
X : NA BRECHA
XI : O FRADE
XII : DESOBEDIÊNCIA
XIII : COMBATE
XIV : O PRISIONEIRO
QUARTA PARTE: A CATÁSTROFE
I : ARREPENDIMENTO
II : O SACRIFÍCIO
III : SORTIDA
IV : REVELAÇÃO
V : O PAIOL
VI : TRÉGUA
VII : PELEJA
VIII : NOIVA
IX : O CASTIGO
X : CRISTÃO
XI : EPÍLOGO

XV : OS TRÊS

505 32 0
By ClassicosLP

Loredano que nessa mesma manhã saíra de casa tão cedo, apenas se entranhou na mata, esperou.

Um quarto de hora depois vieram ter com ele Bento Simões e Rui Soeiro.

Os três seguiram juntos sem dar uma palavra; o italiano caminhava adiante, e os dois aventureiros o acompanhavam trocando de vez em quando um olhar significativo. Por fim Rui Soeiro rompeu o silêncio:

– Não foi decerto para espairecer pelos matos ao romper da alva, que nos fizestes vir aqui, misser Loredano?

– Não, respondeu o italiano laconicamente.

– Mas então desembuchai de uma vez, e não percamos tempo.

– Esperai!

– Que espereis, vos digo eu, atalhou Bento Simões, ides numa batida... Onde nos pretendeis levar nesta marcha?

– Vereis.

– Já que não há meio de vos sacar mais palavra, segui com Deus, misser Loredano.

– Sim, acudiu Rui Soeiro, segui; que nós tornamos por onde viemos.

– Quando estiverdes de vez para falar, nos avisareis.

E os dois aventureiros pararam dispostos a retroceder; o italiano voltou-se com um gesto de desprezo.

– Parvos que sois! disse ele. Se vos parece, revoltai-vos agora que estais em meu poder, e que não tendes outro remédio senão seguir a minha fortuna! Voltai!... Também eu voltarei; mas para denunciar-vos a todos.

Os dois aventureiros empalideceram.

– Não me façais lembrar, Loredano, disse Rui Soeiro abaixando um olhar rápido para o punhal, que há um meio de fechar para sempre as bocas que se obstinam a falar.

– Isto quer dizer, replicou o italiano desdenhosamente, que me mataríeis no caso de que eu vos quisesse denunciar?

– À fé que sim! respondeu Rui Soeiro com um tom que mostrava a sua resolução.

– E eu pela minha parte faria o mesmo! Primeiro está a nossa vida que as vossas venetas, misser italiano.

– E que ganharíeis vós em matar-me? perguntou Loredano sorrindo.

– Essa é melhor! que ganharíamos? Achais que é coisa de pequena valia assegurar a sua existência e o seu descanso?

– Néscios!... disse o italiano cobrindo-os com um olhar de desprezo e de piedade ao mesmo tempo. Não vedes que quando um homem traz um segredo como o meu, a menos que esse homem não seja um truão da vossa laia, ele deve ter tomado as suas precauções contra estes pequenos incidentes?

– Bem vejo que estais armado, e mais vale assim, respondeu Rui Soeiro; será morte antes que homizio.

– Direis melhor, execução, Rui Soeiro! retrucou Bento Simões.

O italiano continuou:

– Não são essas armas que me servirão contra vós; outras tenho eu que mais podem; sabei unicamente que vivo ou morto, a minha voz virá de longe, ate mesmo da campa, denunciar-vos e vingar-me.

– Quereis gracejar, misser italiano? A ocasião não é azada.

– A seu tempo vereis se gracejo. Tenho na mão de D. Antônio de Mariz o meu testamento, que ele deve abrir quando me saiba ou me julgue morto. Nesse testamento conto as relações que existem entre nós, e o fim para que trabalhamos.

Os dois aventureiros tornaram-se lívidos como espetros.

– Compreendeis agora, disse Loredano sorrindo, que se me assassinardes, se um acidente qualquer me privar da vida, se me der na cabeça mesmo fugir e fazer supor que morri, estais perdidos irremediavelmente.

Bento Simões ficou paralisado como se uma catalepsia o tivesse fulminado. Rui Soeiro, apesar do violento abalo que sentia, conseguiu com um esforço recobrar a palavra.

– É impossível!... gritou ele. isso que dizeis é falso. Não há homem que o fizesse.

– Ponde à prova! respondeu o italiano calmo e impassível.

– Ele o fez... estou certo... balbuciou Bento Simões em voz sumida.

– Não, retrucou Rui Soeiro; Satanás não o faria. Vamos, Loredano: confessai que nos enganastes, que quisestes atemorizar-nos?

– Disse a verdade.

– Mentes! gritou o aventureiro desesperado.

O italiano sorriu: tirando a sua espada estendeu a mão sobre a cruz do punho, e disse lentamente deixando cair as palavras uma a uma:

– Por esta cruz e pelo Cristo que nela sofreu; por minha honra neste mundo, e minha alma no outro, juro.

Bento Simões caiu de joelhos esmagado por este juramento, que não deixava de ter alguma solenidade no meio da floresta sombria e silenciosa.

Rui Soeiro, pálido, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, os lábios trêmulos, os cabelos eriçados e os dedos hirtos, parecia a múmia do desespero.

Estendeu os braços para Loredano, e exclamou com a voz trêmula e sufocada:

– Pois vós, Loredano, confiastes a D. Antônio de Mariz um papel onde existe a maquinação infernal que tramastes contra sua família?

– Confiei-o!

– E nesse papel escrevestes que o pretendeis assassinar a ele e a sua mulher, e lançar fogo à casa se preciso for para a realização de vossos intentos?

– Escrevi tudo!

– Tivestes o arrojo de confessar que tencionais roubar sua filha e fazer dela, nobre moça, a barregã de um aventureiro e réprobo como vós?

– Sim!

– E dissestes também, continuou Rui no auge da desesperação, que a outra sua filha nos pertencerá, a nós que jogaremos a sorte para decidir a qual deverá tocar?

– Não me esqueci de nada, e menos desse ponto importante, respondeu o italiano com um sorriso; tudo isso está escrito em um pergaminho, nas mãos de D. Antônio de Mariz. Para sabê-lo, basta que o fidalgo rompa os pingos de cera preta com que mestre Garcia Ferreira, tabelião do Rio de Janeiro, o cerrou na minha penúltima viagem.

Loredano pronunciou estas palavras com a maior calma, contemplando os dois aventureiros pálidos e humilhados diante dele.

Passou-se algum tempo em silêncio.

– Já vedes, disse o italiano, que estais na minha mão; sirva-vos isto de exemplo. Quando uma vez se pôs o pé sobre o precipício, amigos, é preciso caminhar por cima dele, para não rolar e ir ao fundo. Caminhemos pois. Só de uma coisa vos advirto;—de hoje em diante obediência cega e passiva!

Os dois aventureiros não disseram palavra; porém a sua atitude respondia melhor do que mil protestos.

– Agora deixai essa cara triste e consternada. Estou vivo: e D. Antônio é um verdadeiro fidalgo incapaz de abrir um testamento. Criai esperança, confiai em mim, que breve alcançaremos a meta.

A fisionomia de Bento Simões reanimou-se.

– Falai claro uma vez ao menos, retrucou Rui Soeiro.

– Não aqui; segui-me, que vos levarei a um lugar onde conversaremos à vontade.

– Esperai, acudiu Bento Simões; antes de tudo, reparação vos é devida. Há pouco vos ameaçamos; aqui tendes as nossas armas.

– Sim, depois do que se passou, é justo que desconfieis de nós; tomai.

Os dois tiraram os punhais e as espadas.

– Guardai as vossas armas, disse Loredano escarnecendo, servirão para me defenderdes. Eu sei quanto vos é preciosa e cara a minha existência!

Ambos os aventureiros empalideceram, e seguiram o italiano, que depois de uma meia hora de caminho chegou à touça de cardos que já descrevemos.

A um sinal de Loredano, os seus companheiros subiram à árvore, e desceram pelo cipó ao centro dessa área cercada de espinhos, que tinha quando muito três braças de comprimento sobre duas de largura.

De um lado, na quebrada que fazia o terreno, via-se uma espécie de grata ou abóbada, restos desses grandes formigueiros que se encontram pelos nossos campos, já meio aluídos pela chuva. Neste lagar, à sombra de um pequeno arbusto que nascera entre os cardos, sentaram-se os três aventureiros.

– Oh! disse o italiano imediatamente; há algum tempo já que não venho dessas bandas; mas parece-me que ainda deve haver aqui o quer que seja que vos dará no goto.

Reclinou-se, e estendendo o braço pela cava retirou uma botija que ali estava deitada, e que colocou no meio do grupo.

– É de Caparica, mas do bom. Deste cá não vem!

– Diabo! tendes uma adega!... exclamou Bento Simões a quem a vista da botija tinha restituído todo o bom humor.

– A falar a verdade, disse Rui, esperaria tudo, menos ver sair deste buraco uma botija de vinho.

– É para verdes! Como costumo vir a este lugar, onde às vezes passo bem boas soalheiras, precisava ter um companheiro com quem espairecesse.

– E não podíeis achar melhor! disse Bento Simões dando uma empinadela à botija e estalando a língua. Já lhe tinha saudades!

Cada um dos três tomou a sua vez de vinho e a botija voltou ao seu lugar.

– Bom, disse o italiano, agora tratemos do que serve. Prometi, quando vos convidei a seguir-me, que vos faria ricos, muito ricos.

Os dois inclinaram a cabeça.

– A promessa que vos fiz vai-se realizar: a riqueza está aqui perto de nós, podemos tocá-la.

– Onde? perguntaram os aventureiros lançando um olhar ávido em roda.

– Não vai assim também; fala-se figuradamente. Digo que a riqueza está diante de nós, mas para nos apoderarmos dela é preciso...

– O quê? Dizei?

– A seu tempo; agora quero contar-vos uma história.

– Uma história! replicou Rui Soeiro.

– Da carocha? perguntou Bento Simões.

– Não, uma história verídica como uma bula do nosso santo padre. Ouvistes falar algum dia, em um certo Robério Dias?

– Robério Dias... Ah! sei! um tal do São Salvador? disse Rui Soeiro.

– O mesmo, sem tirar nem pôr.

– Vi-o há coisa de oito anos em São Sebastião, donde se passou às Espanhas.

– E sabeis o que ia fazer às Espanhas esse digno descendente de Caramuru, amigo Bento Simões? perguntou o italiano.

– Ouvi rosnar que se tratava de um tesouro fabuloso que contava oferecer a Filipe 11, o qual em volta o faria marquês, e grande fidalgo de sua casa.

– E o resto, não vos chegou à noticia?

– Não; nunca mais ouvi falar do tal Robério Dias.

– Pois ouvi lá; chegando a Madri, o homem fez a sua oferta mui lampeiro; e foi recebido na palma das mãos por el-rei Filipe II que, como sabeis, tinha as unhas demasiado longas.

– E cinzou-o como uma raposa que era? acudiu Rui Soeiro.

– Enganai-vos; dessa vez a raposa tornara-se macaco; quis ver o coco antes de pagá-lo.

– E então?

– Então, disse o italiano sorrindo maliciosamente, o coco estava oco.

– Como oco?

– Sim, amigo Rui, tinham-lhe deixado apenas as cascas; felizmente para nós, que vamos lograr o miolo.

– Sois um homem de caixas encouradas, Loredano!

– Dá-se a gente a tratos, e não é possível entender-vos.

– Tenho culpa eu, que não sejais lido na história das coisas de vossa terra?

– Nem todos são mitrados como vós, dom italiano.

– Bom, acabemos de uma vez; o que Robério Dias julgava oferecer em Madri a Filipe II, amigos, está aqui!

E Loredano dizendo estas palavras assentou a mão sobre um seixo que havia ao lado.

Os dois aventureiros olharam-se sem compreender, e duvidando da razão de seu companheiro. Quanto a este, sem se importar com o que eles pensavam, tirou a espada, e depois de desenterrar a pedra, começou a cavar.

Enquanto prosseguia neste trabalho, os dois observando-o passavam alternadamente a botija de vinho, e faziam conjeturas e suposições.

O italiano já cavava há tempo, quando o ferro tocou num objeto duro, que o fez tinir.

– Per Dio, exclamou, ei-la!

Daí a alguns momentos retirava do buraco um desses vasos de barro vidrado, a que os índios chamavam camuci; este era pequeno e fechado por todos os lados.

Loredano tomando-o pelas duas mãos abalou-o e sentiu o imperceptível vascolejar que fazia dentro um objeto qualquer.

– Aqui tendes, disse ele lentamente, o tesouro de Robério Dias; pertence-nos. Um pouco detento, e seremos mais ricos que o sultão de Bagdá, e mais poderosos que o doge de Veneza.

O italiano bateu sobre a pedra com o vaso que se partiu em pedaços.

Os aventureiros, com os olhares incendidos de cobiça, esperando ver correr ondas de ouro, de diamantes e esmeraldas, ficaram estupefatos. Do bojo do vaso saltara apenas um pequeno rolo de pergaminho coberto por um couro avermelhado, e atado em cruz por um fio pardo.

Loredano com a ponta do punhal rompeu o laço, e abrindo rapidamente o pergaminho, mostrou aos aventureiros um rótulo escrito em grandes letras vermelhas.

Rui Soeiro soltou um grito: Bento Simões começou a tremer de prazer, de pasmo e admiração.

Passado um momento, o italiano estendeu a mão para o papel colocado no meio do grupo; seus olhos tomaram uma expressão dura.

– Agora, disse ele com a sua voz vibrante, agora que tendes a riqueza e o poder ao alcance da mão, jurai que o vosso braço não tremerá quando chegar a ocasião; que obedecereis ao meu gesto, à minha palavra, como à lei do destino.

– Juramos!

– Estou cansado de esperar, e resolvido a aproveitar o primeiro ensejo. A mim como chefe, disse o italiano com um sorriso diabólico, devia pertencer D. Antônio de Mariz; eu vo-lo cedo, Rui Soeiro Bento Simões terá o escudeiro. Eu reclamo para mim Álvaro de Sá, o nobre cavalheiro.

– Aires Gomes vai-se ver numa dança! disse Bento Simões com um aspecto marcial.

– Os mais, se nos incomodarem, irão depois; se nos acompanharem serão bem-vindos. Unicamente vos aviso que aquele que tocar a soleira da porta da filha de D. Antônio de Mariz, é um homem morto; essa é a minha parte na presa! E a parte do leão.

Nesse momento ouviu-se um rumor como se as folhas se tivessem agitado.

Os aventureiros não fizeram reparo, e atribuíram naturalmente ao vento.

– Mais alguns dias, amigos, continuou Loredano, e seremos ricos, nobres, poderosos como um rei. Tu, Bento Simões, serás marquês de Paquequer; tu, Rui Soeiro, duque das Minas; eu... Que serei eu, disse Loredano com um sorriso que iluminou a sua fisionomia inteligente. Eu serei...

Uma palavra partiu do seio da terra, surda e cavernosa, como se uma voz sepulcral a houvesse pronunciado:

– Traidores!...

Os três aventureiros ergueram-se de um só movimento, hirtos e lívidos: pareciam cadáveres surgindo da campa.

Os dois persignaram-se. O italiano suspendeu-se ao ramo da árvore, e lançou um olhar rápido.

Tudo estava em sossego.

O sol a pino derramava um oceano de luz: nenhuma folha se agitava ao sopro da brisa; nenhum inseto saltitava sobre a relva.

O dia no seu esplendordominava a natureza.   

Continue Reading

You'll Also Like

292K 22.4K 45
"𝖠𝗆𝗈𝗋, 𝗏𝗈𝖼ê 𝗇ã𝗈 é 𝖻𝗈𝗆 𝗉𝗋𝖺 𝗆𝗂𝗆, 𝗆𝖺𝗌 𝖾𝗎 𝗊𝗎𝖾𝗋𝗈 𝗏𝗈𝖼ê." Stella Asthen sente uma raiva inexplicável por Heydan Williams, o m...
416K 33.7K 49
Jenny Miller uma garota reservada e tímida devido às frequentes mudanças que enfrenta com seu querido pai. Mas ao ingressar para uma nova universidad...
6.4K 439 6
Obra do inglês Charles Dickens.
847K 53K 134
Alex Fox é filha de um mafioso perdedor que acha que sua filha e irmãos devem a ele. Ele acha que eles têm que apanhar se acaso algo estiver errado...