V : VILANIA

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E' tempo de continuar esta narração interrompida pela necessidade de contar alguns fatos anteriores.

Voltemos pois ao lagar em que se achavam Loredano e seus companheiros tomados de medo pela exclamação inesperada que soara no meio deles.

Os dois cúmplices, supersticiosos, como eram as pessoas de baixa classe naquele tempo, atribuíam o fato a uma causa sobrenatural, e viam nele um aviso do céu. Loredano porém não era homem que cedesse a semelhante fraqueza; tinha ouvido uma voz; e essa voz embora surda e cava devia ser de um homem.

Quem ele era? Seria D. Antônio de Mariz? Seria algum dos aventureiros? Não podia saber; o seu espírito perdia-se num caos de dúvidas e incertezas.

Fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões para que o seguissem; e apertando ao seio o fatal pergaminho, causa de tantos crimes, lançou-se pelo campo. Teriam feito umas cinqüenta braças do caminho, quando viram cortar pela vereda que eles seguiam um cavalheiro que o italiano reconheceu imediatamente; era Álvaro.

O moço procurava a solidão para pensar em Cecília, mas sobretudo para refletir num fato que se tinha dado essa manhã e que ele não podia compreender.

Vira de longe a janela de Cecília abrir-se, as duas moças aparecerem, trocarem um olhar; depois Isabel cair de joelhos aos pés de sua prima. Se ele tivesse ouvido o que já sabemos, teria perfeitamente compreendido; mas longe como estava, apenas podia ver, sem ser visto das duas moças.

Loredano, vendo o cavalheiro passar, voltou-se para os seus companheiros.

– Ei-lo!... disse com um olhar que brilhou de alegria. Imbecis! que atribuís ao céu aquilo que não sabeis explicar!...

E acompanhou estas palavras com um sorriso de profundo desprezo.

– Esperai-me aqui.

– O que ides fazer? perguntou Rui Soeiro.

O italiano se voltou surpreso; depois levantou os ombros, como se a pergunta do seu companheiro não merecesse resposta.

Rui Soeiro, que conhecia o caráter desse homem, entendeu o gesto; um resquício de generosidade que ainda havia no seu coração corrompido, o fez segurar o braço do seu companheiro para retê-lo.

– Quereis que fale?... disse Loredano.

– E mais um crime inútil! acudiu Bento Simões.

O italiano fitou nele os olhos, frios como o contato do aço polido:

– Há um mais útil, amigo Simões; cuidaremos dele a seu tempo.

E sem esperar a réplica, meteu-se pelas moitas que cobriam o campo nesse lugar, e seguiu Álvaro que continuava lentamente o seu caminho.

O moço, apesar de preocupado, tinha o hábito da vida arriscada dos nossos caçadores do interior, obrigados a romper as matas virgens.

Aí o homem vê-se cercado de perigos por todos os lados; da frente, das costas, à esquerda, à direita, do ar, da terra, pode surgir de repente um inimigo oculto pela folhagem, que se aproxima sem ser visto.

A única defesa é a sutileza do ouvido que sabe distinguir entre os rumores vagos da floresta, aquele que é produzido por uma ação mais forte do que a do vento; assim como a rapidez e certeza da vista que vai perscrutar as sombras das moitas e devassar a folhagem espessa das árvores.

Álvaro tinha esse dom dos caçadores hábeis; apenas o vento lhe trouxe um estalido de folhas secas pisadas, levantou a cabeça, e circulou o campo com os olhos; depois por prudência encostou-se ao grosso tronco de uma árvore isolada, e cruzando os braços sobre a clavina, esperou.

O Guarani (1857)Where stories live. Discover now