Cecília ouvindo a voz de seu pai, estremeceu como se acordasse de um sonho.
Atravessou o aposento com passo vacilante, e chegando-se a Peri, fitou nele os seus lindos olhos azuis com uma expressão indefinível.
Havia nesse olhar ao mesmo tempo a admiração imensa que lhe causava a ação heróica do índio; a dor profunda que sentia pela sua perda; e uma exprobração doce por não ter ele ouvido as suas súplicas.
O índio nem se animava a levantar os olhos para sua senhora; não tendo realizado o seu desejo, considerava agora tudo quanto fizera como uma loucura.
Sentia-se criminoso; e de toda a sua ação heróica e sublime para os outros, só lhe restava o pesar de ter ofendido Cecília, e de lhe haver causado inutilmente um desgosto.
– Peri, disse a menina com desespero, por que não fizeste o que tua senhora te pedia?...
O índio não sabia o que responder; temia ter perdido a afeição de Cecília, e essa idéia martirizava os últimos momentos que lhe restavam a viver.
– Cecília não te disse, continuou a menina soluçando, que ela não aceitaria a salvação com o sacrifício de tua vida?
– Peri já te pediu que perdoasses! murmurou o índio.
– Oh! Se tu soubesses o que fizeste hoje sofrer a tua senhora!... Mas ela te perdoa.
– Ah!... exclamou Peri, cuja fisionomia iluminou-se.
– Sim!... Cecília te perdoa tudo que sofreu, e tudo que vai sofrer! Mas será por pouco tempo...
A menina dizia essas palavras com um triste sorriso de sublime resignação; conhecia que não havia mais esperança de salvação, e esta idéia quase a consolava.
Não pôde acabar porém; a palavra ficou-lhe presa aos lábios, trêmula, convulsa: seus olhos se fixavam em Peri com um sentimento de terror e de espanto.
A fisionomia do índio se tinha decomposto; seus traços nobres alterados por contrações violentas, o rosto encovado, os lábios roxos, os dentes que se entrechocavam, os cabelos eriçados davam-lhe um aspecto medonho.
– O veneno!... gritaram os espectadores dessa cena horrorizados.
Cecília fez um esforço extraordinário, e lançando-se para o índio, procurou reanimá-lo.
– Peri!... Peri!... balbuciava a menina aquecendo nas suas as mãos geladas de seu amigo.
– Peri vai te deixar para sempre, senhora.
– Não!... Não!... exclamou a menina fora de si. Não quero que tu nos deixes!... Oh! tu és mau, muito mau!... Se estimasses tua senhora, não a abandonarias assim!...
As lágrimas orvalhavam as faces da menina, que no seu desespero não sabia o que dizia. Eram palavras entrecortadas, sem sentido; mas que revelavam a sua angústia.
– Tu queres que Peri viva, senhora? disse o índio com a voz comovida.
– Sim!... respondeu a menina suplicante. Quero que tu vivas!
– Peri viverá!
O índio fez um esforço supremo, e restituindo um pouco de elasticidade aos seus membros entorpecidos, dirigiu-se à porta e desapareceu.
Todas as pessoas presentes o acompanharam com os olhos e o viram descer à várzea e ganhar a floresta correndo.
A última palavra que ele proferira tinha um momento restituído a esperança a D. Antônio de Mariz; mas quase logo a dúvida apoderou-se do seu espírito; julgou que o índio se iludia.